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A aventura da comunicação

Uma coisa que me faz muita confusão - ouvir uma língua e não perceber patavina. Fico incomodada. Sinto-me impotente. Já não basta quando falamos a mesma língua e não nos entendemos, ainda tinha que haver uma barreira maior ao entendimento. Num dia-a-dia vivido no nosso país de origem, falando sempre a nossa língua, vendo filmes traduzidos, frequentemente esquecemos esta questão do entendimento linguístico. E só nos lembramos dela quando a temos à nossa frente.

O problema põe-se quando decidimos fazer umas férias no estrangeiro. Nas zonas frequentemente visitadas por turistas, onde se fala ou arranha o Inglês, o Francês ou o Espanhol, desenrasca-se sempre alguma coisa. Nunca ninguém passa fome ou fica a dormir na rua por falta de comunicação. O drama surge quando essas línguas só se falam nas principais cidades. Sai-se das zonas turísticas, entra-se no país real e é tudo diferente. Aconteceu-me recentemente em Praga.

Nos restaurantes, hotéis e teatros da capital da República Checa nunca sentimos problemas de comunicação. Está tudo preparado para facilitar a vida ao turista e para rentabilizar os serviços e as actividades dirigidas a ele. Nos sítios turísticos, não é novidade para ninguém encontrar ementas em várias línguas. Mas ainda espanta encontrar uma que venha em Português. Na belíssima praça central da Cidade Velha de Praga existe um restaurante que tem a ementa também em Português. E isto faz o portuguesinho sentir-se bem!

O que já nos deixa baralhados é quando estamos perante alguém e não conseguimos entender nem fazermo-nos entender. Quando do outro lado não há o mínimo de conhecimento de uma outra língua estrangeira, não há anos de estudo que nos valham. Senti isso quando nós, turistas portugueses, olhámos um para o outro, sem saber o que fazer. Estávamos numa loja de peças de automóveis. Queríamos satisfazer um pedido de uma encomenda de um farol para um Skoda de 1964. Tínhamos duas fotos do carro e uma factura de um farol comprado na República Checa. A factura estava, portanto, escrita em Checo e podia ajudar.

A loja era nos arredores de Praga, a uns vinte minutos de eléctrico. A vida e os edifícios, nesta zona, não têm nada a ver com Praga central. Oito paragens de eléctrico fazem a diferença. Na loja, iniciámos a abordagem como sempre: "Do you speak English?" Pela primeira vez tivemos como resposta um gesto negativo, quase assustado. O rapaz atrás do balcão chamou o outro que, talvez por vergonha, não veio. Continuou a atender o seu cliente checo com quem, por razões óbvias, se entendia perfeitamente. O primeiro rapaz quase desistiu de nos prestar atenção. Mas foi apontando para as prateleiras, como que a dizer para procurarmos o que queríamos. E nós ficámos ao balcão, a olhar um para o outro.

Decidimos, então, usar a nossa "arma": o envelope com as fotografias e com a factura. Chamámos a atenção do rapaz, apontámos para as fotografias, mostrando o farol da frente, que era o que queríamos. O rapaz olhou, aparentemente percebeu, e começou a falar-nos em Checo, como se nós dominássemos a língua dele. Como não foi o caso, ele falou para o colega que disse "rear" (trás) com um sotaque estranhíssimo que fez com que não percebêssemos à primeira. E, na torrente, de palavras, lá percebemos, por aproximação, que estavam a dizer que os faróis já não se fabricam (percebemos a negação de fábrica) e que só tinham os faróis de trás. Quando finalmente percebemos, o nosso ar de alívio provocou a risota geral na loja.

Entretanto, o primeiro rapaz tinha ido buscar o farol, porque o reconhecimento dos objectos é a melhor forma de comunicação. Pegou na peça toda e escreveu um preço. Pegou na peça toda e escreveu outro preço. A comunicação entre nós, nesta fase, já estava a decorrer lindamente.

O que nós precisávamos, então, era de telefonar para saber se o farol de trás interessava ou não. O fácil gesto do telefone funcionou à primeira. O rapaz fez-me um sinal para entrar para dentro do balcão mas eu disse que não. Ele fez um gesto, percebia-se bem, que queria perguntar se o telefonema era para longe. Disse que sim com a cabeça. Então conduziu-nos à porta e indicou-nos uma cabine telefónica ao fundo.

Quando regressámos à loja foi fácil pegar no farol, acenar com a cabeça e mostrar dois dedos. Preparou os dois faróis, apresentou-nos a factura e pagámos, todos contentes. Tínhamos cumprido a difícil missão de comunicar recorrendo apenas a duas palavras: "trás" em Inglês e "fábrica" em Checo. O facto de, horas depois, termos ficado com a sensação de que o rapaz nos enganou no troco foi mero pormenor numa aventura que teve muito mais valor do que seis contos para trás ou para a frente...

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester / UK


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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