Página  >  Edições  >  N.º 99  >  A Guerra Química Sob Disfarce

A Guerra Química Sob Disfarce

A Crise dos Balcãs

A utilização de urânio empobrecido em munições pela NATO tem sido por esta justificada pelas propriedades mecânicas excepcionais do urânio metálico, designadamente elevada densidade e dureza, que permitem um excepcional poder de penetração em blindados e fortificações inimigas. Esta alegação é tendenciosa por, ao ser feita, implicitamente escamotear outras propriedades ainda mais excepcionais do urânio, designadamente a sua toxicidade química e radioactividade, o que permite-nos vislumbrar a verdadeira motivação do seu uso. Digamo-lo claramente: as munições com urânio empobrecido são destinadas a fazer a guerra química e radiológica e, subsidiariamente, a "guerra convencional". Vejamos porquê.

Se o real objectivo de utilização do urânio tivesse a ver com as suas propriedades mecânicas, essas munições poderiam com nítida vantagem utilizar o tungsténio. Este outro metal é de facto também actualmente utilizado em munições penetrantes. A Armada portuguesa está equipada com tais granadas! O tungsténio tem muitas outras aplicações, aplicações industriais perfeitamente pacíficas e muito úteis, sendo as mais correntes em instrumento de corte em máquinas ferramenta e em filamento em vulgares lâmpadas. Não há aqui qualquer novidade.

Se bem se lembram, a utilização de tungsténio no fabrico de aço duro, já aquando da Segunda Guerra Mundial, provocou uma corrida ao seu aprovisionamento por parte quer da Alemanha quer dos Aliados, corrida de que em Portugal resultaram enormes fortunas e sinistros crimes, narrados no magnífico livro "Volfrâmio" de Aquilino Ribeiro (1944). Portugal, que possui apreciáveis reservas de tungsténio, era então um produtor destacado a nível mundial. A queda da cotação levou ao encerramento de várias minas, das quais resta em laboração apenas a da Panasqueira.

Ora olhemos para os dados técnicos pertinentes. A densidade do tungsténio (19,3) é ligeiramente superior à do urânio; a sua temperatura de fusão é muito superior à do urânio (diferença superior a 2200 C), o mesmo acontecendo à temperatura de ebulição; os "módulos mecânicos" do tungsténio são todos superiores aos do urânio; a sua dureza excede sensivelmente a do urânio em todas as escalas de medida. Quem quiser pode constatar esses factos numa enciclopédia ou, como é agora habitual, na NET (por exemplo: www.webelements.com).

Uma questão que não tem sido referida a propósito das munições penetrantes, mas que é um "pormenor" importante, é que elas deverão adquirir uma quantidade de energia (cinética) muito superior à das munições usuais. Para tal terão de dispor de maior força propulsora e maior densidade. É a sua maior energia que lhe confere a superior penetração. Aquando do impacto produz-se energia térmica e uma muito rápida elevação da temperatura. Por este último motivo deverá a munição suportar elevadas temperaturas antes de se desintegrar e finalmente vaporizar. Daqui se concluem duas coisas: primeiro, o material da munição penetrante não se fragmentará como acontece com a munição tradicional, mas sim acabará por se fundir e vaporizar e sequentemente dispersará na forma de vapor e aerossol; segundo, postas as circunstâncias do impacte perfurante e ponderadas as propriedades dos dois metais, o tungsténio leva de longe vantagem sobre o urânio.

Mas então porquê utilizar o urânio? Razão económica? A "defesa" não costuma olhar a preços, haverá sempre orçamento que baste; e, como ficou dito, ainda que se "atribua" (na ausência de um "mercado") baixo preço ao urânio empobrecido, o preço do tungsténio está muito baixo (ou não teriam fechado as nossas minas, ricas como a Borralha!).

A conclusão que se extrai desta breve mas objectiva apreciação é que é falsa a razão apresentada pela NATO para a incorporação de urânio nessas munições. Certo é que ele se vaporiza e "desaparece" com o impacto (ainda agora ouvimos o relato de um alto responsável nosso que o confirma). Após o que disperso e por tal quimicamente activo, é passível de ser incorporado no solo, nos cursos de água, assimilado nas plantas e animais e pelo homem. Alguns processos biogeoquímicos conduzem mesmo à sua lenta concentração selectiva em certos seres vivos. Ora é sob essa forma dispersa que o urânio se revela altamente perigoso: tóxico químico e agressor radiológico. Se inalado ou ingerido e assimilado, a sua acção produz efeitos metabólicos e genéticos comprovados. Mesmo em pequenas doses ainda que a longo prazo. A legislação portuguesa já em 1961 fixava os limites de concentração então achados toleráveis no ar e na água para o urânio empobrecido (bem como para muitas dezenas de outros radionuclídeos) - Decreto-Lei n.º 44060 de 25 de Novembro de 1961 que criou a Comissão de Protecção Contra as Radiações Ionizantes e que fixou os limites de doses radiológicas aceitáveis para o homem e de concentrações de radionuclídeos no ambiente. Os conhecimentos entretanto acumulados têm conduzido à ideia que os riscos aceitáveis aconselham limites mais baixos. E também se tem substanciado a ideia que os riscos inerentes a esses radionuclídeos são simultaneamente radiológicos e directamente químicos.

Pelo contrário, na forma metálica o urânio empobrecido é quase inofensivo, podemos conviver bem com ele. Sendo sobretudo emissor alfa, mas sendo também um metal pesado e muito denso, a sua radioactividade é quase totalmente absorvida no interior do próprio corpo metálico, muito pouco se manifestando à superfície. Mas se vaporizado, se dissolvido ou se dispersado em poeira fina no ar ou na água, toda a sua radioactividade se "expõe" e se torna potencialmente agressiva.

Ora o urânio empobrecido, para além do alegado poder de penetração que confere às munições, tem essa outra "virtude" ou "criminoso vício": após o impacto dispersa-se e torna-se em um poderoso agente de guerra química e radiológica. Como havemos de acreditar que tal se trata "apenas" de um infeliz "efeito colateral"? Acredite quem quiser.

Rui Namorado Rosa
professor universitário e investigador da antiga Junta de Energia Nuclear


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora
Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo