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José Rodrigues em entrevista à Página

"Não consigo parar, tenho medo da rotina"

Nasceu em Luanda, em 1936, e veio para o Porto onde se formou em escultura pela Escola Superior de Belas Artes, da qual já foi professor. Foi um dos fundadores da Árvore Cooperativa Cultural, através da qual nasceu o curso superior de arquitectura, e da Escola de Artes Profissionais Árvore. Ajudou a fundar a Bienal de Cerveira e nesta mesma vila minhota fundou também a Escola de Artes e Ofícios e a Escola Superior de Arquitectura.
O famoso cubo da Praça da Ribeira (1976), hoje simplesmente denominada por muitos como a "Praça do Cubo", é um dos trabalhos da sua autoria que porventura mais terá marcado o Porto. Em 1994, ganha o prémio "Tendências da Arte Contemporânea em Portugal", atribuído pela Câmara municipal de Santa Maria da Feira, estando representado em várias colecções particulares e museus nacionais e estrangeiros. Colabora ainda como cenógrafo com diversas companhias de teatro portuguesas e espanholas. Hoje, José Rodrigues - apesar de ser uma referência incontornável do meio artístico nacional - mantém a irreverência própria de uma juventude contestária, considerando - talvez por isso mesmo - que a arte devia ser "o espaço dos jovens".

 

Uma das principais apostas do governo socialista foi, a par com a educação, a cultura. No entanto, desde que a Manuel Maria Carrilho abandonou o governo a cultura parece ter deixado de ser assumida como uma causa para passar a ser entendida como um encargo. Que espaço está reservado ao actual ministro José Sasportes?

Acho que ainda é cedo para se julgar o novo ministro. Que é diferente do anterior, isso é. Manuel Maria Carrilho fez um trabalho excelente, teve uma entrada de leão, e um dos argumentos que utilizou quando abandonou o gabinete foi a falta de financiamento para levar avante o seu projecto.

É terrível pensar que um governo possa cortar o financiamento em áreas tão importantes como a educação e a cultura, que, aliás, não percebo porque estão separadas por dois ministérios, quando deveriam ser um mesmo rosto. Não sei exactamente quais serão as consequências, mas é certo que isso irá reflectir-se negativamente na qualidade de vida dos cidadãos. Considero que existem três áreas onde não se pode cortar no orçamento: na saúde, na educação e na cultura. Corte-se no resto - nas expos e nas capitais da cultura, nomeadamente -, mas aí não.

O Porto 2001 tem arrastado atrás de si um evidente confronto político. A política imiscui-se excessivamente na cultura?

Não sei, mas os políticos têm necessidade de visibilidade e a cultura é um bom meio de projecção. Antigamente eram as coristas que lançavam os políticos, hoje são os cantores e os artistas. Somos uma espécie de coristas da cultura. Claro que no caso de ser um político que o mereça, não há mal nenhum em darmos a cara por ele. Eu próprio fiz isso.

Considera interessante a programação do Porto 2001?

Acho-a muito interessante, apesar de não acreditar no éfemero. E boa parte da programação tem um carácter efémero. Mas acredito muito, por outro lado, nas obras dos arquitectos da cidade do Porto. O ser humano foi finalmente tratado com a dignidade que merecia. Pela primeira vez vai poder andar-se a pé pelo Porto. É a primeira vez que há uma leitura da cidade onde se previligia as pessoas. Nesse aspecto, estão de parabéns os arquitectos e a autarquia. Acredito muito nesta reabilitação e na Casa da Música, porque ela vai comprometer o Porto com uma actividade cultural regular. Se isso não acontecer ela vai ser um lindo túmulo, mas vazio... Cabe a nós, cidadãos do Porto, não deixar que isso aconteça.

O Porto 2001 pode ser uma boa oportunidade para desenvolver a apetência cultural dos seus habitantes. Existe um projecto sólido de formação de públicos que corresponda a essa ambição?

É evidente que é sempre preciso percorrer um caminho, e foi com Manuel Maria Carrilho que ele se iniciou. Nesse aspecto, ele teve um grande mérito. O último espectáculo da Seiva Trupe a que assisti, por exemplo, estava cheio. No meu tempo isso era impossível. Ficávamos muito satisfeitos quando iam vinte ou trinta pessoas ao Teatro Experimental do Porto. Então cem pessoas era uma enchente! Actualmente, todas as salas da cidade costumam estar cheias: o Coliseu, o Teatro Nacional São João, o Rivoli... Ou seja, começa a haver um público, e principalmente fico muito satisfeito que ele seja jovem.

A próposito desta questão, ainda recentemente falei informalmente com a vereadora da cultura da Câmara Municipal do Porto, Manuela Melo, e fui um pouco crítico em relação à política de divulgação cultural. Mas fiquei sem argumentos quando a ouvi falar dos projectos de divulgação cultural que estão a ser efectuados nas escolas e nos bairros sociais, que estão a preparar público a longo prazo, para daqui a dez anos... São exemplos como este, aparentemente invisíveis e que progridem muito lentamente, que contribuem para esse objectivo. Tal como o trabalho dos engenheiros e dos operários que trabalham na renovação da cidade, que estão a transformar o Porto sem que ninguém dê conta. São pessoas anónimas, mas que contribuem decisivamente para uma nova cidade.

Mas esse tem sido um trabalho da autarquia... Pensa que o ministério da educação e da cultura têm trabalhado nesse sentido?

Pessoalmente, desiludi-me do ensino. Fui professor da faculdade de Belas Artes durante muitos anos, mas a certa altura senti que a escola entrava num processo de rotina. Não sei se o defeito foi meu ou da organização do sistema, mas o facto é que o senti. Creio que no norte do país não existe estímulo, aqui todos dizem "amén", o que é muito mau. O consenso é mau. Eu sou um homem de atritos, de tensões... sem tensão não há cidade, não há cultura, não há ensino.

E no Porto, a segunda cidade do país, nem sequer há uma página de arte, de cultura. Se não fosse o vosso jornal a falar da educação, por exemplo, era o silêncio. Mas vocês não podem ser os únicos... Eu tenho receio pelo futuro, porque não há contrapoderes. Ninguém ousa dizer "o rei vai nu"... Vamos todos a Serralves e aos museus, mas muito caladinhos...

Há espaço para os jovens criadores de arte em Portugal?

No meu tempo não havia. Depois do 25 de Abril acreditámos que poderia haver. Hoje as condições são melhores. No nosso tempo expunhámos para os amigos, ninguém comprava e nem sequer havia crítica de arte. Hoje compra-se arte por outras razões, considera-se um investimento. Se um jovem hoje não garantir a venda das suas produções, quem é que lhe pega? O mundo pragmático em que vivemos vive orientado para o lucro. Claro que as galerias e os artistas têm de viver, mas os jovens não têm muitas oportunidades. Eu gostaria imenso que a arte fosse o lugar dos jovens. As pessoas também têm de dar prejuízo, porque se derem lucro é o sistema a funcionar, e por definição ser jovem é estar naturalmente contra o sistema.

A cultura deveria viver sem subsídios? Isto é, os criadores artísticos deveriam autonomizar a sua actividade?

Isso é um problema complicado. Imagine-se o que não seria um governo atribuir subsídio aos artistas para o "atacar", ao contrário do que acontece agora, em que se atribui subsídios para que eles digam "amén". É preciso ser-se um grande homem e existir um grande governo para dizer: "toma, diz mal de mim". Quem tem coragem para isso? Os jovens têm que ter necessariamente subsídios para suportar as suas actividades, porque de contrário não teriam condições para isso.

Qual é a sua opinião sobre a recente polémica relativa à atribuição de subsídios para o teatro, no qual algumas companhias se consideram discriminadas e acusam o Instituto Português das Artes e do Espectáculo de ter um critério pouca claro no que toca à qualidade dos projectos?

Sei que houve uma polémica e que alguns actores estão zangados, mas não sei porquê... A qualidade às vezes é subjectiva. E depois há sempre os lobbies.

A cultura nem sempre é fácil. E nesse aspecto o (realizador) Manoel de Oliveira disse outro dia uma coisa muito bonita: "Não faço filmes para ganhar prémios". Os prémios representam o consumismo. Claro que há sempre bons artistas que merecem ser premiados, mas quem ganha prémios habitualmente vende muito, e vender muito passa a ser sinónimo de qualidade. Mas isso pode questionar-se. O facto de um aluno ter boas notas corresponde necessariamente a uma qualidade do ensino?

Na cultura é a mesma coisa. Como é que algumas companhias não hão-se ter a casa cheia? Põe a perna à mostra, e pronto... é o teatro fácil. O teatro que perturba, aquele que nos dá um murro no estômago, não tem tantos espectadores. E nesse sentido temo que estejamos a criar uma personagem que, mais tarde ou mais cedo, irá criar calos no rabo. Daqui a alguns anos, o português vai ter uns grandes calos no rabo porque passa a vida diante da televisão. Tal como Balzac, que ganhou calos no rabo porque passava a vida a escrever sentado. Tenho muito medo disso...

Os mecenas privados substituem-se cada vez mais ao Estado no financiamento da cultura. É um sinal dos tempos...

Para além do Estado existe sempre o sector privado, que é muito importante. E lá está a tal tensão que referia há pouco... Isso já vem desde há muito: o privado tem tentado afirmar-se em relação ao Estado e à igreja desde o Renascimento.

O Porto 2001, por exemplo, é patrocinado por três grandes empresas...

Sim, e não acho mal, desde que não interfiram muito. Claro que também podem interferir directamente e dizerem que querem que se faça isto ou aquilo. Se tivéssemos um Medicis como o da Itália renascentista, ou um Guell, como o que patrocinou Gaudí em Barcelona... Mas vamos tendo alguns bons exemplos, como é o caso do padre Nuno, que encomendou a igreja de Marco de Canavezes ao arquitecto Siza Vieira. E repare-se quantas igrejas medíocres existem pelo país fora. A cultura é tudo isto. Pode haver alguns medíocres, mas é importante que não haja uma única forma de ver as coisas e pensá-las. Isso é que eu receio que aconteça no futuro. São fascismos disfarçados.

Continua ligado à Bienal de Cerveira?

A Bienal de Cerveira penso que estará bem de saúde porque se profissionalizou. Cresceu, mas pode ter perdido a alma. São essas tensões que é preciso saber gerir. Quanto a mim, pertenço à fase da militância e desliguei-me um pouco daquilo. Há profissionalismo, mas esquece-se a utopia. E a utopia é um pouco a negação de tudo isto, é ir contra... mas é assim o mundo.

Ajudei a criar a Cooperativa Árvore contra tudo e contra todos. Foi a primeira cooperativa privada de ensino artístico superior e ninguém acreditava na sua viabilidade. Hoje forma arquitectos. Do mesmo modo, lançamos em Vila Nova de Cerveira a Escola Superior de Arquitectura, à qual o ministro da educação da altura torceu o nariz, e que hoje está em pleno funcionamento. Menos bem correu a Escola de Artes e Ofícios, pela qual estamos actualmente em litígio com o Ministério da Educação. Mas acredito que Cerveira podia ser um grande centro de artes e de ensino.

Que projectos tem actualmente em mãos?

Mais recentemente envolvi-me na promoção de uma bienal em Paços de Ferreira, desenvolvida em íntima relação com as populações. A população foi até lá e sentiu que aquilo tinha sido feito por eles. Ao mesmo tempo, organizamos um concurso para jovens designers. O presidente da câmara já está a pensar na próxima. É bom sinal, estamos a tranformar o meio. Em Valença estamos também a pensar em aproveitar as muralhas, mas ainda não está nada definido.

Não consigo parar, tenho medo da rotina. Quando saí da ESBAP verifiquei que as pessoas tinham passado a tratar-me por mestre. Tinha-me transformado em mestre. Um dia disse a mim próprio que nunca mais lá entrava. E nunca mais entrei.

Entrevista conduzida por: Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

José Rodrigues
Pintor e Escultor. Faculdade de Belas Artes do Porto.
José Rodrigues
Pintor e Escultor. Faculdade de Belas Artes do Porto.

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