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Educar pessoas é diferente de produzir recursos humanos

Presumo que não é exagerado dizer que hoje, com as actuais políticas dominantes, a escola é chamada a responder cada vez mais sozinha ao desafio da promoção social e aos velhos e novos problemas sociais.

Todos reconhecemos que uma das principais dificuldades da escola é precisamente a de ter de responder à diversidade de solicitações que lhe vêm a ser colocadas, ao mesmo tempo que se confronta com a desorganização crescente das comunidades e com o desaparecimento de grupos e organizações socialmente activas. O tecido comunitário é cada vez mais pobre. O isolamento no interior das famílias, quando existem, é cada vez mais evidente. As pessoas estão cada vez mais entregues a si próprias e cada vez mais distantes das outras. Os contactos sociais reduzem-se cada vez mais ao local de trabalho e ao contacto virtual via televisões.

É a falência das várias organizações sociais - aqui incluídas as igrejas que recorrem cada vez mais à escola - que faz aumentar, dia a dia, as responsabilidades da escola e dos professores. Paradoxalmente a escola, naturalmente incapaz de responder a todas as exigências a que é sujeita, é cada vez mais desconsiderada. Desconsideração e responsabilização que se estende e se abate particularmente sobre os educadores e professores. É da ordem do dia a afirmação de que os professores precisam de mais e diferenciada formação. Eles têm de aprender a ser professores, educadores sexuais, formadores em educação cívica, polícias, guardas prisionais, psicólogos, educadores sociais, mediadores de conflitos, pais, mães, tios, avós, irmãos, missionários, padres, mestres de boas maneiras, escriturários, marcadores de faltas (...) os professores devem ser tudo e por isso tudo devem aprender - não se sabe é como e com quem, mas isso é outra conversa. Querendo que sejam tudo, é provável que os levem a não ser nada. E podem então ser responsabilizados por terem perdido as suas referências, a sua cultura e saber profissional e por se verem reduzidos à categoria de "recurso humano" indiferenciado.

Forçosa defesa

É forçoso que os professores se defendam e se afirmem e decidam o que são e o que não são. E expliquem as suas funções à sociedade. É importante que o façam até para que esta perceba que precisa de se reorganizar e de assumir as suas responsabilidades. O desenvolvimento não pode continuar a ser só económico ignorando o social, o político e o cultural. O tecido comunitário tem de ser reconstruído. Os autarcas não podem permitir que o urbanismo se resuma à construção de "jaulas". Os que têm a responsabilidade de planear território e os ambientalistas têm de ter trabalho e palavra. As escolas não podem continuar a ser atiradas para os terrenos baratos das periferias. Humanizar o espaço e as comunidades e nelas integrar a escola é urgente e é preciso.

Hoje, nesta sociedade, a que alguns chamam "Sociedade do Conhecimento", vai sendo também exigido à escola, e aos professores, que através da sua actividade prática, promovam uma nova divisão social, legitimem novas desigualdades sociais somando-as às desigualdades que vêm do passado.

O discurso retórico sobre as novas tecnologias vem emergindo como pensamento único e querendo que ignoremos que ao longo da História, e mais próximo de nós no último século, não fosse vulgar o aparecimento de "novas tecnologias". O que este discurso ensurdecedor pretende não é mais do impor uma nova divisão social entre os que dominam e os que não dominam algumas das tecnologias mais recentes e assim legitimar exclusões e desclassificações profissionais e algum desemprego.

Para nós a escola devia ser, antes de mais, o local onde se aprende e se constrói o conhecimento que nos permite entender o mundo, os outros e a vida. Um espaço capaz de contribuir para tecer os laços sociais e apreender a elaborar a democracia da vida. Mas é cada vez menos isso que na realidade se pede à escola.

Nos últimos trinta anos assistimos ao desenvolvimento do hiperconsumo, à mercantilização generalizada dos nossos gestos e palavras e de todos os bens e serviços, à explosão de novas tecnologias, à mundialização do pensamento liberal, ao desenvolvimento da sociedade do espectáculo. A vida já não é para ser vivida mas representada.

É por isso que a educação e o ensino têm vindo a deixar progressivamente de ter como preocupação dominante a formação de pessoas, procurando, cada vez mais, a produção do que agora se chamam de "recursos humanos". E formar "recursos humanos" não é, como se sabe, a mesma coisa que formar trabalhadores, mas sim a formação dessa coisa a que chamam "activos".

No discurso e no desejo dos que mandam, o trabalho é reduzido a um recurso formado, organizado, gerido, valorizado, desvalorizado, reciclado ou abandonado em função dos interesses conjunturais da empresa. Ao trabalho atribui-se cada vez menos valor social, valor em si, e cada vez mais se lhe atribui um valor mercantil, isto é, um valor que varia em função dos interesses conjunturais do mercado de trabalho. O "recurso humano" - qual escravo de outros tempos - é apenas uma mercadoria que deve estar disponível onde for precisa. Enquanto mercadoria é despojado de direitos cívicos, sociais, políticos ou culturais. É este "produto" que se pretende que a escola produza. E é por aqui que passa hoje, necessariamente, o debate sobre as finalidades da escola. Quem é capaz de formar melhor estes recursos? A empresa escolar? A escola? Estejamos atentos às propostas de Bush nos EUA. Têm cá os seus adeptos.

Se os que teimam em formar pessoas sucumbirem às pressões dos que entendem que o "progresso" exige que a escola se transforme em empresa, siga as leis do mercado e enverede pela produção de "recursos humanos" então os professores terão de aceitar que são outra coisa. A educação - que para o ser vive fora do mercado - passará necessariamente para a esfera do mercado sujeitando-se às leis deste. De não mercadoria passará para a categoria de mercadoria, que se vende de acordo com a lei da oferta e da procura. Tenderá a ser apresentada como condição de sobrevivência do indivíduo e será reduzida à condição de alavanca da competitividade de cada um no mercado de trabalho. Subordinar-se-á cada vez mais à tecnologia, aos negócios e à legitimação das novas formas de domínio e de divisão social do trabalho.

Reduzido o trabalhador - nesta categoria incluídos os professores - à condição de "recurso humano", ele terá de mostrar, em cada momento, que é usável o que significa que o trabalhador perderá o que hoje se designa por direito ao trabalho passando a ter de fazer demonstração permanente da sua "empregabilidade" (vejam-se os discursos sobre avaliação). O conceito de "política social activa do trabalho" ou "empregabilidade", têm vindo a alterar a linguagem e as posturas face ao trabalho. As empresas e os serviços já não têm trabalhadores mas activos.

Na perspectiva dos que discursam sobre a escola como produtora de recursos humanos, ou activos, a função da educação é cada vez mais reduzida à condição de garantir a "empregabilidade", formando de modo a garantir que estes recursos "humanos" podem ser usáveis, recicláveis, rentáveis e descartáveis.

Certamente desactualizado, como professor e cidadão, confesso-me interessado nas pessoas e nada entendo de activos.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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