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Sucesso escolar/sucesso educativo

Na última crónica, a propósito da circulação cada vez mais insistente no espaço escolar da expressão "comunidade educativa" para designar a escola em sentido lato, interpretei essa inovação vocabular como fazendo parte duma prática discursiva que visa tornar o educativo num domínio que já não se distingue do escolar, ao mesmo tempo que o escolar se serve do local como mediador dos interesses privados.
Valeria a pena alargar um tanto esta reflexão. Quem possa socorrer-se um pouco da sua memória ou da sua experiência pessoal e profissional, há-de lembrar-se de que a querela entre o sucesso escolar e sucesso educativo conheceu alguma acuidade pedagógica até meados dos anos 80 para, a partir daí, se refugiar sem honra nem glória no sótão das velharias pedagógicas.
Alimentava-se tal querela do pressuposto de que o bom comportamento escolar, necessariamente dependente da reprodução dum saber transmitido, não assegurava só por si, um processo educativo recomendável. Se bem que nunca tivesse sido apurado o modo concreto como se haveria de operar a diferenciação, o que, evidentemente, fazia parte da própria querela, a verdade é que a afirmação da irredutibilidade do educativo ao escolar significava para muitos profissionais da escola a existência dum espaço que se recusava a ser gerido apenas didactisticamente ou tecnologicamente, como as tendências da época já se inclinavam a determinar.
Consolidada a escola de massas, a revisitação, cerimoniosa e anunciada, que nos dias de hoje se faz ao tema confere-lhe um estatuto de dignidade nostálgica e velada, como se se reconhecesse nele uma causa nobre, mas irremediavelmente perdida, num tempo de "pequena burguesia desbragada". Ninguém terça armas em prol da autonomia dum educativo face à hegemonia dum escolar, cada vez mais totalizante e totalitário, que vai desde os jardins de infância até aos cursos paralelos de explicações, (alguns custando os olhos da cara) e passa pelos ateliers dos tempos livres, ocupa as tardes e os serões dos pais e agita freneticamente algumas editoras...
A querela está, assim, prestes a transformar-se num objecto de museu da cultura escolar, à semelhança do que aconteceu a outras querelas, como a dos "universais", que se perde nos confins da história ou, mais recentemente, a do latim e da matemática.
O que, todavia, não deixa de ser intrigante em todo este processo de transformação das relações entre o educativo e o escolar, que se traduz no esvaziamento da querela, é o papel desempenhado pela teoria da não-directividade na estruturação da autonomia do educativo. Nos termos duma tal teoria, a educação, sendo essencialmente um processo de auto-desenvolvimento, não pode ser objecto de prescrições e imposições alheias, sob pena de impedir o acesso à autenticidade de cada um, doravante um valor central da educação.
Esta perspectiva que, na sua versão europeia, ajudou a fundar uma crítica sistemática à instituição escolar, visada como sendo, no plano social, a encarnação da autoridade e da alienação, terá favorecido o impacto da chamada "crítica artística", saída dos intelectuais de Maio de 68, fundamentalmente reivindicadora de bens sensíveis de valor e aplicação individuais, não alienados às "estruturas". Este terá sido o terreno propício para a mercadorização do desejo que, segundo BOLTANSKY, se tornou objecto de investimento privilegiado do capitalismo nos últimos 25 anos. A aposta na produção de singularidades "marcantes" à custa do consumo, "expediente" económico para combater a massificação, ao mesmo tempo que a produz, encontrou na escola. um espaço de eleição.
O fim da querela parece, então, significar que a autonomia do educativo não soube ou não pôde encontrar alternativas no plano social, dando assim lugar à hegemonização do organizacional de que faz parte a emergência da "comunidade educativa".

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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