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Um outro mundo possível? (exercício crítico sobre o desenvolvimento e o progresso - parte I )

 

Um mundo em sofrimento?

A leitura das estatísticas e dos relatórios elaborados pelas organizações internacionais mergulha-nos na inquietação. Após décadas de políticas de desenvolvimento, o mundo não se tornou mais justo, mais igual, mais seguro. Ao invés, a pobreza, a exclusão e a violência alastraram. Não apenas na periferia, no chamado Terceiro Mundo, mas também no próprio centro do sistema mundial, com o aparecimento de um Quarto Mundo cada vez mais numeroso. Os relatórios de organizações como as Nações Unidas e o Banco Mundial são, em si mesmo, confissões públicas do fracasso. Para o Banco Mundial, instituição do "consenso de Washington", responsável principal, juntamente com o FMI, a OMC e a OCDE, pela programação e execução das políticas de desenvolvimento, vivemos num mundo desigual:
"Dos 6 biliões de habitantes, 2,8 biliões (quase a metade) vivem com menos de 2 dólares por dia e 1,2 bilhão (um quinto) com menos de 1 dólar por dia, sendo que 44% vivem no sul da Ásia. Nos países ricos, menos de uma criança em 100 não completa cinco anos, mas nos países mais pobres um quinto das crianças morrem antes disso. Enquanto nos países ricos menos de 5% de todas as crianças abaixo de cinco anos são desnutridas, nos países pobres a proporção chega a 50%" (www.worldbank.org/poverty/wdrpoverty/report/Poroverv.pdf).
A pobreza está em toda a parte, afirma-se no último relatório sobre o desenvolvimento humano produzido pelas Nações Unidas. Os dados apresentados são cruéis: mais de um quarto dos 4,5 mil milhões de pessoas nos países pobres não tem qualquer expectativa de viver para além dos 40 anos, mais de 1,3 mil milhões de pessoas não têm acesso a água potável, mais de 840 milhões passam fome, uma em cada sete crianças em idade escolar está fora da escola primária básica. Ela está também presente, como veremos um pouco mais à frente, nos países que ocupam as primeiras posições dos índices de desenvolvimento humano (cf. www.undp.org/hdro/Chapter1.pdf).
Saliente-se ainda que o fosso entre países ricos e países pobres não parou, nas últimas décadas, de se alargar, verificando-se retrocessos impressionantes em diversas zonas do planeta:
"A renda média nos 20 países mais ricos equivale a 37 vezes a média dos 20 mais pobres, uma diferença que duplicou nos últimos 40 anos. A experiência difere muito de uma região a outra. No leste da Ásia, o número de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia diminuiu de cerca de 420 milhões para cerca de 280 milhões entre 1987 e 1998, mesmo após a crise financeira. Mas na América Latina, sul da Ásia e África Subsaariana o número de pobres tem aumentado. Nos países da Europa e Ásia Central em transição para a economia de mercado, o número de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia aumentou mais de 20 vezes" (www.worldbank.org/poverty/wdrpoverty/report/Poroverv.pdf).
Este incremento apenas acentuou um fenómeno estrutural, ligado à consolidação, nos últimos duzentos anos, da economia-mundo capitalista. Comparando 1820 com 1992, verificamos que a diferença dos mais ricos face aos mais pobres passou de 3 para 1 para 72 para 1. Mais grave e significativo, os países mais pobres estão a um nível idêntico, e por vezes pior, ao que estavam aqueles que se encontravam em igual situação em 1820.
A esta forma de desigualdade junta-se uma outra, assente nas diferenças entre ricos e pobres no interior de cada país. Se estas diferenças são antigas e bem conhecidas nos países pobres, assiste-se ao crescimento brutal da pobreza nos países com melhores níveis de desenvolvimento. Assim, sempre de acordo com o citado relatório das Nações Unidas, uma pessoa em cada oito está afectada por uma forma de pobreza: (i) desemprego de longa duração; (ii) esperança de vida inferior a 60 anos; (iii) rendimento insuficiente; (iv) iliteracia. Contribuindo para este balanço iníquo, os duzentos indivíduos mais ricos do mundo detêm o equivalente a 41% do rendimento mundial, tendo duplicado os seus rendimentos nos últimos quatro anos. Diga-se também que o rendimento dos três maiores multimilionários equivale ao rendimento dos 600 milhões de indivíduos que pertencem aos países mais pobres do planeta. De acrescentar que a afectação anual de somente 1% da fortuna destes duzentos indivíduos geraria um recurso financeiro de 7 a 8 mil milhões de dólares, suficiente para garantir o acesso de todos à educação primária (cf. http://www.undp.org/hdro/overview.pdf)[1].
Mas o sofrimento não é apenas humano. É o planeta no seu todo, são as mais diversas formas de vida que sofrem. Vivemos num tempo marcado pela destruição acelerada dos ecossistemas e da biodiversidade, "efeito de estufa" e aquecimento do planeta, desertificação e envenenamento dos solos e da água, comprometendo um futuro viável para todos em favor de um presente apenas para alguns. Se a longo prazo a degradação ambiental pode colocar em causa a existência de vida no planeta, no presente os seus impactos são já socialmente devastadores, fazendo-se sentir sobretudo nos países pobres: a disponibilidade de água, quando comparada com o ano de 1970, é de apenas 60%, o mesmo acontecendo com a cobertura florestal. Os recursos renováveis estão a ser consumidos a um ritmo insustentável: os stocks haliêuticos estão reduzidos a três quartos, com numerosas espécies em vias de extinção. Sobre alguns dos países mais pobres - Bangladesh e Egipto, entre outros - repousa o espectro da inundação de uma parte do seu território devido à subida do nível médio dos oceanos provocado pelo aquecimento global do planeta. A instabilidade climática, nomeadamente a provocada em 1997 e 1998 pelo fenómeno conhecido por El Niño afectou severamente países já duramente castigados como a Nicarágua e as Honduras (cf. www.undp.org/hdro/ /Chapter1.pdf).

Interrogar o desenvolvimento

Fazendo um sucinto e parcelar balanço, o retrato dos últimos 50 anos das políticas de desenvolvimento planeadas e aplicadas pelas instituições do "consenso de Washington" acusa a tragédia humana que está por detrás desta aparente bondade dos governos e das principais organizações internacionais[2]: (i) agravamento das desigualdades entre o centro e a periferia; (ii) conclusão do processo - iniciado no século XV com a expansão marítima portuguesa - de integração/assimilação forçada das sociedades ditas primitivas na economia-mundo dominada pelo espaço euro-americano[3]; (iii) concentração da riqueza e incremento da exclusão nos países centrais; (iv) exploração desmedida dos recursos naturais, de uma forma não sustentada que a prazo coloca em causa a própria viabilidade da vida no planeta; (v) redução da democracia a formas inócuas e extremamente limitadas, afastando os cidadãos do controlo efectivo das suas vidas e das políticas nacionais e internacionais.
Perante este cenário, impõe-se a tarefa de interrogar o desenvolvimento. Palavra hegemónica, não fará ela própria parte do aparato hegemónico que domina a actual fase da globalização em que se encontra mergulhado o sistema-mundo moderno? Assim, parece-me necessário questionar: que desenvolvimento, para que serve, a quem interessa, em que condições ele se faz sentir? Questões certamente merecedoras de uma larga e intensa discussão, excedendo em muito o âmbito do texto, não quero, contudo, deixar de relevar que, tal como sustentam Silva e Ribeiro (2000: 121-122):
"Temas e tópicos como ?desenvolvimento? e ?desenvolvimento sustentável? parecem, à primeira vista, suscitar um amplo consenso, no qual determinados objectivos mínimos (v.g. modernizar, superar estrangulamentos, aproveitar potencialidades exógenas e endógenas, responder a determinados 'desafios' nomeadamente da globalização) seriam partilhados por todos os protagonistas políticos (instituições estatais e municipais, partidos políticos, sindicatos e associações patronais, associações locais para o desenvolvimento). Nada mais de falso e enganador. Mesmo quando possam conjunturalmente, a curto prazo, encontrar-se plataformas mínimas de intervenção social e política perante determinadas realidades sociais pungentes e, como tal, tacticamente defensáveis, não há, de facto, convergência real nos modelos explicativos do desenvolvimento desigual, bem como nos diagnósticos das desigualdades sociais, nem tão pouco nas análises prospectivas e propostas estratégicas de médio-longo prazo".
Podemos até ir mais além, não nos ficarmos apenas pela discussão sobre modelos e programas de intervenção em matéria do desenvolvimento, antes ensaiando a crítica do conceito. Assim, para Portela (1999a) é tempo de se desenvolver a noção de desenvolvimento, pois não faz sentido algum falar nele - acrescenta o autor num outro texto - se os seres humanos não forem, simultaneamente, actores e beneficiários de tal processo, sendo que "a participação dos cidadãos é uma questão fulcral" (Portela 1999b: 12). Por seu lado, Santos (1999: 3), na esteira de muitos outros (cf. Escobar 1991: 675), reclama que, uma vez que "a falência da miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente, em vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento alternativo talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao desenvolvimento". Em síntese, de uma forma ou de outra - desenvolvendo ou procurando alternativas ao conceito - é urgente prosseguir a reflexão crítica sobre o desenvolvimento, procurando causas e relações que o permitam compreender e transformar.

Fernando Bessa Ribeiro
UTAD - Chaves

Notas

[1] Embora não constitua um elemento central da reflexão, não posso deixar de trazer também à colação o problema da (ausência de) paz no nosso tempo. Ao contrário do que nos prometeram os arautos do "fim da história" (cf. Fukuyama 1992), o colapso da União Soviética e dos seus aliados não produziu um mundo mais seguro nem, tão pouco, fez travar a redução das despesas militares. Neste campo, a única coisa que efectivamente mudou foi a retórica da justificação. Desaparecida a "ameaça" soviética, as despesas militares passaram a ser ideologicamente sustentadas pela retórica da intervenção humanitária. Numa completa corrupção de conceitos e valores, passamos a conviver com a guerra "humanitária" e as operações de manutenção da "paz" à revelia das Nações Unidas e do Direito internacional. Os colossais orçamentos dos Estados Unidos (804 dólares per capita), da França (642 dólares per capita), do Reino Unido (484 dólares per capita) e da Alemanha (355 dólares per capita), entre outros, iguais ou superiores ao produto interno bruto per capita dos países mais pobres do planeta servem, na verdade, para garantir a defesa dos seus interesses políticos e económicos através da ameaça e, sempre que necessário, do uso da força sobre os Estados "mal comportados". (cf. www.lariposte.com/theorie/ /relations_internacionales_21_siecle.html).
[2] Ribeiro e Portela (2000) apresentam como exemplo paradigmático a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), uma instituição governamental dos Estado Unidos. Aparentemente um caso de ajuda "generosa" e "desinteressada" aos países pobres, funciona como um instrumento para a realização de determinados objectivos políticos (do governo americano), para além de dar cobertura a operações da CIA (Smith 1997: 181). No seu site (www.info.usaid.gov/abou/), a instituição é transparente, enunciando com clareza os objectivos que estão por detrás desta "filantropia" Norte-Sul: apoiar o desenvolvimento económico e fornecer ajuda humanitária no quadro da promoção dos interesses económicos e políticos dos Estados Unidos.
[3] Como esclarece Lévi-Strauss (1996: 76-77), a adesão da periferia à modernização não é espontânea como muitos querem fazer crer. Mais do que uma decisão livre, resulta da inexistência de qualquer possibilidade de escolha. O autor recorda, bem a propósito, que a civilização ocidental disseminou os seus exércitos, as suas fábricas, as suas plantações e os seus missionários pelo mundo inteiro, intervindo directamente na vida das populações subjugadas, mudando radicalmente o seu modo de vida. Perante a desorganização, melhor, o caos social instalado, estas populações não podiam fazer outra coisa que não fosse aceitar as soluções apresentadas pelos ocidentais.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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