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Os pássaros aprendem a cantar durante o sono

O ano Mil mereceu inúmeros estudos históricos. Como acontece em relação a muitos outros acontecimentos marcantes, teceram-se sobre aquele ano muitas interpretações.
Muitos historiadores procuraram descobrir que ondas de afectividade envolveram povos e culturas naquele longínquo ano. Mostra-nos a História que os povos se deixaram muitas vezes envolver por ondas de medo, de terror, de amor, de solidariedade, de esperança, de desespero ou de ódio. No caso do ano Mil, na nossa cultura que o celebrou, pesem embora opiniões contrárias, parece que se caracterizou por uma onda afectiva que envolveu os povos em desespero e medo. "No ano 1000, o homem do Ocidente atinge o cúmulo das desgraças que o perseguiram durante todo o século X; a crença no fim do mundo é reavivada pela aproximação da data fatídica e estimulada por prodígios; um medo indescritível apodera-se da Humanidade. Mas o ano passa, o Mundo não é destruído, a Humanidade respira aliviada e entra com reconhecimento em novas vias. Tudo muda, tudo melhora "(1).

Cá estamos Mil anos depois. Este mês de Dezembro é não só o último mês do ano, mas marca também o fim do século e do milénio. Não fora o nosso tempo um tempo de pressa e de consumo e estaríamos agora mais dados às comemorações. Mas a pressa fez com que muitos dos balanços e da festa se tivesse consumido com um ano de adianto. Ainda assim sentimos alguma obrigação em não deixar passar a data em claro. Comentar alguma coisa para lá do quotidiano? Que ondas de afectividade atingem a humanidade neste nosso ano dois Mil? O que nos envolve e nos afecta a todos para além das pequenas tropelias do quotidiano? Não sei se temos a distância necessária para entendermos esta data. Mais tarde, muito mais tarde, alguns procurarão entender-nos e compreender o que somos hoje a viver.

Em cima do acontecimento, e numa visão pessimista, somos porventura levados a pensar que este ano dois Mil foi um ano de descrença e de indiferença. Um tempo de individualismo, um ano sem ondas colectivas. Sem sonhos. Sem projectos. Um ano em que cada um viu o mundo a partir do seu pequeno mundo. Se onda houve foi uma onda colectiva de individualismo. Uma onda que convida a aceitar e a acreditar que a vida é feita de vulgaridade, de "pequenos nadas".

Mas nós sabemos que a aparência não se confunde com a realidade. O que parece nunca é o que parece. E se parece que o mundo soçobra sob ondas de consumismo, individualismo, violência, ausência de solidariedade, fome, doença, miséria, guerra, mentira, ganância, exploração do homem, ódio - talvez, com optimismo, o tempo venha a mostrar que a realidade é o contrário da aparência.

É provável que daqui a alguns anos se descubra que afinal por baixo desta aparência de ondas de barbárie, se formavam e avolumavam ondas ondas civilizacionais capazes de transportar finalmente a humanidade para além da barbárie.

Este ano 2000 assinala o fim de um século em que a violência se confundiu e se misturou com um enorme progresso do conhecimento humano e com sonhos de fim da barbárie. Século de contradições a lembrar-nos o que somos.

Aparentemente este foi o ano em que se fizeram e desfizeram os grandes investimentos na economia da informação. Tempo da abertura das comunicações. Tempo em que a produção cada vez maior de informação e de conhecimento corre a par do analfabetismo. E o crescimento da ciência e da tecnologia andam ao lado da fome, da miséria, da doença. Este continua a ser o tempo das contradições. O tempo da afirmação da barbárie. O tempo em que a civilização continua adiada. À espera.

Como explicarão os vindouros este nosso tempo? Como nos entenderão? Como explicarão esta nossa incapacidade para agir como seres humanos? Como entenderão a animalidade que nos domina? Este tempo em que a fome caminha de mãos dadas com a biotecnologia, a biogenética ...

De pássaros já sabíamos muita coisa. Sabíamos que se tratavam, de modo geral, com respeito e urbanidade. Que aprendiam o que tinham que aprender. Que aqueles que tinham algo a ensinar, ensinavam. Este ano ficamos também a saber que se os jovens pássaros aprendem a cantar é porque ensaiam durante o sono, as músicas que escutam durante o dia às aves adultas. "Aparentemente, os pássaros armazenam durante o dia os padrões de impulsos eléctricos gerados durante a emissão do seu canto, e estudam esses impulsos à noite, durante o sono, ensaiando a música e, talvez, improvisando variações", escreveu, neste Dezembro, Daniel Margoliash, investigador da Universidade de Chicago.

Quem sabe que sonhos e cantos ouvimos, armazenamos, estudamos e ensaiamos e que variações estudamos e produzimos nesta aparente noite em que vivemos? Quem sabe que melodias estamos individual e colectivamente a compor nesta volta do tempo? Que músicas estamos a inventar?

Que esta dobra do tempo nos ajude a reinventar a esperança. São votos neste Dezembro.

José Paulo Serralheiro

(1) O ano mil

Leitura como prenda de fim-de-ano

"Ano mil, ano 2000"

"(...) Há mil anos, as concepções sobre o tempo eram diferentes. É verdade que a Igreja, a ínfima minoria dos "letrados" (isto é, dos clérigos que sabiam latim), se preocupava com o tempo decorrido desde a Incarnação do Senhor. Mas não estabeleciam uma escala numérica do tempo onde situar todo e qualquer acontecimento e servindo de medida a toda a duração. como quando datamos precisamente o nosso nascimento ou avaliamos o número de anos passados a descontar para a reforma. Um acontecimento era muitas vezes datado pelo ano do reinado de um rei ou de um papa, e não necessariamente pelo ano da Incarnação. As recordações eram evocadas tendo por referência uma determinda inundação, uma guerra de que se sofrera pessoalmente, e não por uma data válida para toda a gente. A grande maioria, incluindo os clérigos e os monges, ignorava a data do seu nascimento. O aniversário de uma grande personagem não significava o dia do seu nascimento no mundo, mas o da sua morte, verdadeiro nascimento no céu (como no caso dos santos que se celebravam naquele dia), ocasião todos os anos de uma comemoração litúrgica nesse mesmo dia. O ano da morte não interessava à memória cíclica, que apenas os dias escandiam. O tempo era de facto objecto de cálculos aritméticos e de observações astronómicas, que constituiam a ciência clerical do comput. Mas o objectivo não era estabelecer o countdown dos dias, minutos e segundos que separavam do ano mil, à maneira do relógio electrónico da praça da Bastilha, mas determinar, para cada um dos anos futuros, o dia da festa móvel da Páscoa (primeiro domingo depois da primeira lua cheia depois do équinócio da Primavera) a fim de preparar a sua celebração. O ano Mil (mas tão poucos se sabiam nesse ano 1000 em que nós os situamos) conhecia um tempo cíclico, anual, ritmado pela rotação dos astros e a alternância das estações; um tempo relativo ao saber dos homens, ao seu meio social, à região em que viviam (...)"

Jean-Claude Schmitt in "Viva o ano Mill" de Jacques Le Goff e outros


  
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Edição:

e
Ano 9, Dezembro 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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