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"Licenciados em engenharia de caudas de cão perdigueiro"

"A escola é um lugar para onde menino é levado (...) em que lhe dão um mestre geralmente especializado em educar porque não sabia fazer mais nada" (Agostinho da Silva)

Gabo a coragem do Zé Paulo. Mas recentes diatribes do Sindicato dos Professores Licenciados (SPL) impeliram-me a completar o seu incontornável texto publicado "Página da Educação" do mês de Outubro. Fá-lo-ei da pior maneira, num registo fratricida, mas, na minha idade, já não me sobra paciência para aturar setôres com parolos complexos de superioridade, que não hesitam em zurzir impunemente os professores do primeiro ciclo (e só "enfiará o carapuço" quem o desejar...)
Retomaria o exemplo a que recorreu, o do assédio a que as escolas são submetidas por "licenciados em engenharia de caudas de cão perdigueiro". Porque, se alguns não lograram penetrar as frágeis defesas, muitos outros - por não lograrem emprego por outras paragens, ou por não saberem fazer mais nada - por cá ficaram. E não serão poucos, ainda que nos custe admiti-lo.
Simbioticamente, o Estado aproveitou-se... e eles aproveitaram-se. Antigamente (tal como agora), a vida real era bem difícil. E muitos dos licenciados em "engenharia de caudas de cão perdigueiro", ao mesmo tempo que alcançavam o canudo, apercebiam-se de que o diploma de nada lhes serviria. À falta de melhor, sempre tinham à mão um empregosito como "professor". Eu só estranho que, na polivalência e flexibilidade vigentes e perante o desemprego que assola a classe dos professores, um engenheiro ou um advogado possa "dar aulas" e que um professor no desemprego se veja impedido de assinar um projecto de engenharia ou de ser advogado na barra de um tribunal. Há muita injustiça neste mundo.
Para muitos dos improvisados candidatos à docência a pedagogia era uma batata. Na falta dos saberes essenciais para o exercício da função, enfrentavam os primeiros tempos de sala de aula armados de faltas disciplinares, e lá iam conseguindo meter na ordem sucessivas hordas de vândalos que lhes entravam sala a dentro, de cinquenta em cinquenta minutos.
Promovidos a "dadores de aulas", macaqueavam o único "modelo de ensino" que haviam experienciado enquanto alunos, no tempo em que passeavam sebentas por aulas de cuspe e acetato. Descobriram que o saber pedagógico e a cientificidade poderiam ser substituídos pela "citabilidade". Com o passar dos anos, transformaram-se em "operadores de manuais escolares", reproduziram práticas de ensino obsoletas, por nunca terem tido oportunidade de aprender outras.
Não importava se o diploma era de Teologia, de Engenharia, de História ou de Relações Internacionais. A profissão docente foi invadida e devassada por militares, padres, arquitectos, engenheiros, advogados no desemprego, para os quais o Ensino constituía a última oportunidade de "ganhar a vida". E o ministério - mãe-galinha de grandes asas - a todos deu guarida e protecção.
Razão tinha o Víctor Crespo, quando foi ministro da Educação, em meados da década de setenta. O homem opôs-se ao saque do sistema por parte de todo o bicho careta no desemprego. Para nossa desgraça, alguns sindicatos (por acaso, o nosso SPN ainda não existia nessa altura) - em nome do sagrado "direito ao trabalho" - deram cobertura ao assalto, escancararam as portas das escolas a pessoal não qualificado. Hoje berram contra o desemprego dos professores. Depois de casa roubada...
A dolorosa realidade é esta: com o advento da massificação do ensino, as escolas viram-se invadidas por todo o género de bacharéis e licenciados que conseguiram emprego a "dar aulas" ainda que não tivessem qualquer qualificação profissional para o efeito. Com o decorrer do tempo, alguns tornaram-se professores enquanto outros desenvolveram uma cultura de funcionário público com a etiqueta de docência.

Como se não bastasse...

No seguimento de uma série de notícias em que o "primário" (como ainda dizem...) era o bombo da festa, um jornal diário com data de 17 de Outubro dava conta da indignação de oito mil professores licenciados do SPL. Rezava a notícia que: "Um professor primário só tem aulas de manhã ou de tarde. E só tem uma turma de meninos. Um professor do ensino secundário (...) tem de levar testes para casa para corrigir, muitas vezes tem aulas à tarde e de manhã". E sobre argumentações tão cretinas quanto esta sustentavam a reivindicação de aposentação com o mesmo tempo de serviço dos "primários".
Coitadinhos! Surpreende-me que sendo mais fácil a vida de um professor "primário" (como dizem), não tenham trocado a sua árdua existência, o imenso sacrifício de vinte, quinze, ou menos horas de "aulas", por vinte e cinco inefáveis horas lectivas (mais dez não-lectivas, é claro) nas eremíticas faldas do Montesinho, ou num longínquo monte alentejano, que só um bom todo-o-terreno ousaria calcorrear.

Quem cala consente

Mas o "primário", Senhor?! Que culpa teve dos desmandos cometidos? Logo o "primário", o único segmento do sistema onde os licenciados em "engenharia de caudas de cão perdigueiro" não conseguiram acoitar-se! Porque fazem dele bode expiatório dos defeitos do sistema e de argumento para reivindicação de mordomias?
A burrice do SPL já não me espanta, como não me surpreende a sua arrogância. O que me surpreende e magoa é verificar que nem um só professor do primeiro ciclo veio a terreiro, nem um sequer manifestou publicamente a sua (mais que justa!) indignação.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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