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Baptista-Bastos ou o Real Quotidiano Revalorizado

Tem sido prática corrente que um jornalista reúna em livro os textos ou crónicas que na voragem dos jornais ou das revistas apenas consente uma leitura apressada e nem sempre entendidos na sua verdadeira dimensão. Mas talvez seja isso reflexo de uma consciencialização mais assumida da própria condição de jornalista que em livro procura revalorizar a efemeridade de textos que devem ser relidos com maior atenção. Por isso, ao acumular os "materiais" humanos e literários, o jornalista capta a vida de todos os dias numa zona de absoluta realização e encara a verdade dos factos, pessoas e lugares dentro de limites mais aceitáveis e melhor compreendidos no sentido real da existência.
Nos textos reunidos nas várias edições de As Palavras dos Outros, publicado pela primeira vez em 1969, Baptista-Bastos integra reportagens ou crónicas como uma espécie de "breviário" para os leitores que desejem entender como se pode ainda e sempre tirar partido do vazio das coisas ou da impassividade de tudo à nossa volta acontece, sem que o jornalista, atento a essa valorização do quotidiano, se possa de algum modo manter indiferente ou alheio ao que se passa no mundo em redor. E daí que o autor de A Colina de Cristal esboce nas páginas deste livro uma espécie de "milagre": arrancar de flagrantes situações da vida fragmentos ou imagens para a construção de um todo que afirme e reafirme a sua pessoal identificação com todos os problemas, nesta comunhão de palavras, ou modo de falar em voz alta como Baptista-Bastos gosta de dizer, ou nestas palavras agora escritas no prefácio desta reedição: "Desejei que fosse um livro aberto ao viver da gente: um discurso suficientemente atraentepara manter o leitor atento aos sentimentos populares, raiz e utopia de toda a aventura humana. Mas também um texto onde a linguagem não fosse só palavras. O poder de sedução destes objectivos foi certamente superior ao resultado. Seja como for, estes relatos falam de pessoas que perderam qualquer coisa ou muita coisa: menos a dignidade. Perdedores que enfrentaram, com obstinação e modéstia, a sua própria história e os desatinos do acaso, tentando contrariar a inclemência do seu sentido".
Em tudo o que arrisca e põe em questão, sempre na sua forma pessoal de denunciar e intervir, Baptista-Bastos revela neste livro uma visão muito própria de retratar um mundo de gente com quem dialogou no fio dos anos e por isso tudo se afirma de forma comovida ou irónica, mas numa intenção marcadamente humanizada, seja no diálogoa com Aquilino Ribeiro ou nas falas com Amália, Matateu ou Rosa Ramalho, na crónica em que fala da Feira do Livro ou do desastre ferroviário de Alcafache ou em que descreve as consequências dramáticas do terramoto dos Açores, enfim, sempre o sentido de reportagem de quem é um grande jornalista está presente nas páginas de As Palavras dos Outros, numa espécie de círculo que percorre os meandros mais fundos da vida em comunhão e solidariedade com os outros.
Por isso, o que se deve salientar neste livro é, sem dúvida, a força e a limpidez da própria escrita: cortante, exacta e meticulosa nos pormenores, mas sempre rigorosa no que descreve e narra. Porque dividido entre a ficção literária e a crónica ou reportagem jornalística, Baptista-Bastos é hoje, sem favor, um dos nomes mais destacados da actual cultura portuguesa, não só pela qualidade admirável da sua escrita, mas sobretudo pelo sentido polémico e intervencionista como tem sabido definir as suas posições assumidas com a verticalidade que se lhe reconhece. Daí, pois, que não seja demais dizer aos leitores, repetindo as palavras de Luiz Pacheco: "Leiam o livro todo. São trabalhos jornalísticos exemplares. Há talento, há verve, há ousadia, há um homem, há um escritor".
Ora, pela força e verdade destes textos e crónicas, As Palavras dos Outros é realmente um livro importante na vasta e expressiva bibliografia activa de Baptista-Bastos, na confirmação de ser um dos melhores escritores ou cronistas deste tempo português e prolongar, na trincheira semanal que ocupa nas colunas do "Diário Económico", uma forma de intervenção muito pessoal, irreverente ou polémica, por parte de quem (ainda) não perdeu o seu direito à indignação.

Serafim Ferreira

Baptista-Bastos
AS PALAVRAS DOS OUTROS
Ed. Círculo de Leitores / Lisboa, 2000


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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