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Luís Amaro ou A Poesia Como Dádiva

LIGADO desde há muitos anos aos meios editoriais e literários, Luís Amaro é sempre uma referência certa e segura quando se fala de bibliografia e de investigação literária atenta, minuciosa e exemplar. E quase sempre se deixa esquecido o poeta que habita dentro de si e cuja voz se calou há muito tempo, autor que foi de um único livro de poemas (Dádiva, 1949), que não passou desapercebido da crítica e mesmo de outros poetas, merecendo na revista Vértice uma crítica entusiástica de Vergílio Ferreira. Mas é evidente que poucas referências se fazem a quem, pela sua propositada discrição e apagamento, reeditou mais tarde (ou "reincidiu" na publicação de Dádiva e de outros poemas) esse Diário Íntimo na intenção definitiva de arrumar os poemas que escreveu entre 1942 e 1971 e no desejo de se silenciar ou a si mesmo impor esse apagamento como poeta. Talvez para dar mais atenção aos livros dos outros. Sem nenhuma espécie de mágoa ou azedume e antes na solidariedade exemplar de tudo fazer para que outros ocupem o lugar na vasta e incompreendida república das letras. Mas sabemos como nos largos anos de actividade editorial na "Portugália" se não cansou de por muitos escritores fazer o que poucos fizeram (ou poderiam fazer) por si, a par de um claro propósito de não deixar cair no esquecimento as obras de tantos outros autores (poetas, ficcionistas e ensaístas) que nem sempre merecem a melhor atenção da crítica ou dos leitores, como aconteceu com a edição recente na Imprensa Nacional das Poesias Completas de Mário Beirão ou de Henrique de Paço d'Arcos.
Nascido em Aljustrel (1923), Luís Amaro cedo se radicou em Lisboa e aqui estabeleceu, por entre ventos e marés a que resistiu como pôde e foi possível, a sua barca de Poeta no convívio de muita e variada gente que, por exemplo, pôs de pé a revista Árvore (1951-53), e regular colaboração literária em revistas e suplementos culturais. Mas comecemos por dizer, na releitura do seu único livro até hoje publicado, que os poemas de Luís Amaro se lêem como o itinerário de quem, em corpo inteiro, se confessa no ritmo de uma "música vital" que se mostra lírica, sentimental, comovida, ou "na forma de recolhimento psicológico e intimista, quase crepuscular", de que nos fala Óscar Lopes, por se saber que todos os males resultam da impaciência do mundo em redor ou da doença que chega e aflige. E é desses males que a sua poesia nos fala em trajecto percorrido pelos rios e lugares que foram de dor e desolação, de espanto e receio da morte e da sofreguidão da vida, em anos tristemente vividos, talvez inúteis e sem outra alegria. E disso o Poeta sempre se lembra: "Todo o meu ser estremece, pressentindo / A morte rondar à porta da minha alma".
Porém, através dos seus versos profundamente tristes, marcados por uma nostalgia que os males do mundo redescobrem, na lembrança de Nobre ou de Pascoaes perdido por outros sonhos, ganha ainda força para combater essa reserva tão desencantada, amarga e solitária: "Ser forte, saber amar / Esta coisa de existir!" E, se esta legenda se inscreve num dos primeiros e breves poemas, é por aí que se abre caminho a uma resistência pessoal que, apesar de todos os sobressaltos, não se deixará arrastar pelo desinteresse ou alheamento da vida: "Há um silêncio que me fala / E um segredo nocturno que pressinto / Na invisível mão que se me estende / E rasga as trevas /Da minha alma perdida no caminho".
Porém, esse tom confessional e intimista não impede que o Poeta trace assim as linhas do seu programa, no propósito de reinventar outra saída que debele os seus males ou faça recuperar outra alegria: "Quando vier a tristeza, / Faz que ela tenha uma grandeza. / Quando vier a rara alegria, / Faz que ela seja pura como a luz do dia. Porque no fundo existe um convencimento "de que tudo é fictício" e não adianta contemplar o mundo calado e discreto, no silêncio das horas de enfado e abandono, no recolhimento de quem vive angustiado e intranquilo: "Até que a noite venha e eu recolha / À solidão do meu quarto. / Mãos vazias e coração intranquilo". E nesse envolvimento psicológico em que o Poeta se deixa mergulhar, pelo desânimo e pela doença em horas de amargo desconsolo e pessimismo, existe ainda essa memória longínqua da infância e dos campos que "um dia pôde amar", mesmo que seja para se interrogar na distância dos anos que passaram: "Como falar dos tempos de criança, / Se nunca tive infância?"E saber todavia que é esse distanciado silêncio do seu Alentejo profundo e longínquo que não deixa de estar presente: "Desde o confins da infância / Uma sombra me espreita / E avassala meu ser, quando o silêncio / Deixa que falem as vozes mais secretas".
Nesta inscrição de um dos últimos poemas de Diário Íntimo (não foi por acaso que Luís Amaro pediu emprestado este título a Manuel Laranjeira) se consubstancia, de algum modo, um sentido nostálgico e saudosista de se achar perdido na cidade grande e não caber no espaço do seu próprio corpo
a angústia diária que no fio dos anos foi uma secreta companheira: "Nada mais quero do que este silêncio, / Este abandono, aqui. Porque "às vozes do meu passado / perdi-lhes o sentido", declara noutro poema, talvez seguro de que todos os sonhos e anseios nunca se conformaram com a sua emotividade em anos difíceis e de guerra, muitos conflitos cruzados e de "fundíssimas tristezas", mais individuais e suas do que colectivas e dos outros, porque o Poeta trazia consigo um persistente sentimento do mundo que lhe é próprio, confinado ao horizonte do silêncio e abandono, à "noite de todas as noites" em que as dores e os males do mundo sempre se povoaram de estranhos medos. E o Poeta clamava (ainda) sem que o pudessem ouvir ou entender o seu apelo: "Ninguém chama por mim, / Nem chamo por ninguém". E assim esta voz magoada e serena se decanta nos passos e ritmos de outras vozes também suaves e quase emudecidas: não se ocultam os sinais dessa mesma presença ou rio caudaloso que, pelos caminhos da sua expressão, reinventam o sonho de melhor entender o mundo ou compreender as suas quimeras pessoais. E nessa calada confidência ainda poder dizer: "A alegria passou à minha porta / Sem olhar para mim".Mas o que Luís Amaro deseja exprimir é esse profundo sentimento da vida (profundo, visível e dorido, é certo) de cair no abismo de si, no "vazio inútil e fútil" em que os sonhos se perderam e o deixaram de mãos vazias. Mas poder desabafar ou tristemente lembrar: "Outrora sonhos tive. Hoje / Sei só que nada sou".
Voz magoada e depurada no seu canto, porque, mesmo na evocação drummondiana, sempre Luís Amaro teve e conheceu uma pedra no meio do caminho e disso fez o seu sincero lamento na diversidade dos caminhos, o Poeta circula à volta da sua alma e para si "a vida é este mar / De amor, ódio, desejo, / Tristeza, sonho ardente". Não por haver ou falar de uma sentida nostalgia dos tempos passados, mas porque no silêncio e círculo fechado da sua procura outras portas se não abriram, a voz emudeceu e o Poeta calou o seu discurso. Não se sabe se para sempre, mas na certeza de ter engrossado essa mesma corrente poética (António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Alberto de Serpa, Saul Dias, Mário Beirão, Sebastião da Gama, Afonso Duarte, Raul de Carvalho, Cristóvam Pavia, Aureliano Lima ou Albano Martins) que, numa visão lírica e intimista da vida e do mundo, nos consentem encarar a poesia como expressão maior do homem e como forma de absoluto entendimento das nossas mais fundas emoções e vivências.
E, no acto próprio de a si mesmo talvez como dádiva ou oferenda se ter silenciado há muito, e no refúgio de Queluz em que se esconde já perto dos oitenta anos, com a doença a fustigá-lo, mas ainda com coragem de estar atento aos livros dos outros, Luís Amaro é um Poeta que se deve ler com prazer e nos comove na amarga e serena expressividade do próprio canto, podendo repetir-se com Jorge de Sena que "a sua poesia se caracteriza por um tom muito discreto e angustiado, que não chega ao confessionalismo e se mantém numa pessoal reserva quase solipsista e desencantada, em que a amargura de um ser isolado encontra notas muito puras, de uma bela musicalidade íntima".

Serafim Ferreira
Crítico Literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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