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O Zé António

Nas paredes de estuque esburacado do decrépito edifício inaugurado no consulado de Sidónio Pais, despontavam as ervas todo o ano e formigas de asas pela Primavera. O caruncho apostava em acabar com o que restava das carteiras. O soalho, também de madeira, era como um campo de golfe mas com mais buracos. No anexo ainda pairava o odor ao queijo da caritas. Só não havia quarto de banho digno do nome, mas não se pode pedir tudo...
Na quarta classe de 76 que a velha escola albergava, a variedade das origens sociais correspondia à variedade dos odores. O Simão exalava a suave fragrância a água de colónia. O Tó, o aroma da alfazema. O Jorge, o perfume barato do fixador que lhe domava as irreverentes melenas. Nas manhãs frias, o Arnaldo tresandava a aguardente. A maioria, criada na bouça e na rua, trazia entranhado nas pobres vestes um intenso cheiro a terra e suor que, na força do Estio, se confundia com o da decomposição dos cadáveres das ratazanas e de outros bichos que coabitavam o desvão do telhado. Mas a aparência rude escondia a doçura das almas.

O Zé António era um miúdo franzino e tímido. Contava dez anitos num corpo frágil que aparentava seis ou sete. Só tinha a seu favor uma prodigiosa imaginação. Era o ás do texto livre. O novo professor não era adepto das enfadonhas redacções com tema e número de linhas pré-fixados. E, pela primeira vez na sua curta vida de estudante, o Zé António soltava amarras e partia à aventura:
"Eu fui com o meu irmão a uma mina perigosa (...) encontrei uns anõezinhos muito aflitos, quase a morrer. Agasalhei-os muito quentinhos, dei-lhes roupa nova. Também vi uma abelha a tentar voar (...) estava a rir e ela pregou-me com o ferroto. Vêdes para que foi a pândega?"
Ou mesclava desejos com a nostalgia de sonhos perdidos:
"Se eu fosse um passarinho. Não. Esta história acabou porque eu já não sei mais. O que eu gostava de ter era uma andorinha. Mas, quando chegasse o Inverno, ela partia e eu tinha um desgosto muito grande."
Num dos seus muitos escritos, deixou escapar um secreto e jamais confessado remorso colectivo:
"Eu sinto um segredo em mim... O nosso professor é muito bom para nós. Nós também podíamos ser bons para ele..."

Infantil remorso, talvez, pois aqueles trinta mafarricos infernizavam a vida das professoras que por lá passavam. O Domingos Mirritos que, nos seus quinze anos, era o decano da turma, tinha conhecido doze. Umas despachavam os malfadados para o último professor "agregado" que lá caísse no ano seguinte. Outras agarravam-se ao atestado como o náufrago à bóia salvadora e desapareciam para nunca mais.
Nas manhãs de invernia, quando algum puto se deixava ficar no aconchego dos lençóis, era "menos um para aturar". Nas manhãs primaveris, quando outros se perdiam pelo caminho, a jogar à bola ou na caça aos girinos dos charcos, era "um alívio".
Quase todos acumulavam várias reprovações. O Zé António vinha de uma família humilde, mas era dos poucos que nunca tinham "gatado".
À chegada, avisaram o novo professor de que aquela era a "turma do lixo", "o refugo da escola", o que "ninguém queria apanhar" e que ("mas, ó senhor professor, isto que não saia daqui!...") o apartar das águas começava logo na primeira classe:
"Ó Dona F..., de quem é filho este miúdo?
É neto do senhor engenheiro, minha senhora.
Então fica nesta lista. E este aqui?
Esse, minha senhora, é filho da Maria Morcega, a que foi para fiandeira. Nem a terceira acabou...
Então, vai para a outra turma."

A Maria Balota, vizinha e conselheira, aproveitou o intervalo do primeiro dia e atirou do portelo:
"Ó senhor, eles são todos uns gandulos. Desta massa não se espere milagres".
Depois, num tom mais condescendente, ainda acrescentaria:
"Eles não vão a bem. Mas, coitados, nem todos tiveram uns pais como o senhor professor..."
O Bordieu ainda levaria um bom par de anos até descobrir o sábio e naturalizado equilíbrio da "reprodução". De um lado, os nascidos em berço de oiro; do outro, os putos ranhosos, as pestes. E, entre uma turma e outra turma, nada de misturas. A família os engendrava, a escola os confirmava, a sociedade os excluía. Por mais inverosímil que hoje nos pareça, era assim naquele tempo.

O Zé António fez a quarta classe com dez anos. O professor perdeu-lhe o rasto nos atalhos da vida e nas teias do trabalho infantil. Voltou a encontrá-lo aos dezoito, esquálido, minado pela miséria. Leu naqueles olhos despojados do brilho e candura da infância a profunda humilhação de "pedir à Junta um atestado de pobreza por não ter maneira de pagar custas ao tribunal".
O Zé António conheceu a prisão, a solidão e o desprezo. perdeu o direito a nome próprio, ganhou fama de ladrão e drogado. Um dia, enquanto se chutava, quis a sorte que a sida lhe penetrasse as veias. O calvário chegava ao fim.
O Zé António foi hoje a sepultar.

José Pacheco
Escola da Ponte /Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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