Página  >  Edições  >  N.º 86  >  Edmundo de Bettencourt - Poeta e Cantor

Edmundo de Bettencourt - Poeta e Cantor

NASCIDO há cem anos na cidade do Funchal (1899-1973), Edmundo de Bettencourt é um dos intelectuais ligados ao movimento da Presença que de todo não mereceu a glória a que tinha direito, talvez por um excesso de discrição e modéstia ou ainda porque os tempos de Coimbra desses anos 20 o motivaram para ser, a par de outros cantores como Menano, Paradela ou Góis, um dos aedos dessa Coimbra inspirada nos acordes melodiosos da guitarra de Artur Paredes, em canções que ainda hoje de escutam com toda a comoção e emotividade, como "Samaritana", "Senhora do Almortão" ou "Coimbra Menina e Moça".
E assim Coimbra e os seus mistérios, sem boémias excessivas, fizeram que Bettencourt se tornasse no poeta que em 1930, em edição da Presença, publicaria o seu primeiro livro O Momento e a Legenda, de que Óscar Lopes pôde observar que "nenhum outro presencista viria a abeirar-se tanto do surrealismo, e no entanto esse livro de estreia dir-se-ia exemplificar a mais analítica e conceptualizada escrita, a menos automática, portanto de toda a poesia ligada àquela revista". E o que de facto se revelava mais singular em O Momento e a Legenda era ainda o desejo de manifestar uma experiência própria e dar dela a sua equivalência mais directa "em termos de metáfora ou de tranfiguração".
Regressando a Lisboa no começo dos anos 30, e sem concluir o curso de Direito que o levara até à cidade do Mondego, Edmundo de Bettencourt, nos intervalos da sua actividade profissional como delegado de propaganda médica, não deixava de frequentar os cafés da baixa lisboeta, como o Royal, Gelo, Restauração ou Nacional, onde o pude conhecer em 1963 e saber como pelo seu fino trato e delicadeza pessoal, a par de uma evidente sensibilidade de poeta, mais parecia um príncipe da Renascença que nas deambulações e convívio sempre fraterno com os mais novos sabia disfarçar ou esconder as dificuldades de uma vida levada com um sorriso franco e dissimulando pelo silêncio esses inaudíveis e longínquos Poemas Surdos publicados em 1940. Mas Edmundo de Bettencourt não sabia estar na vida de outro modo, muito fechado em si e atento aos outros, nada exigindo além de um convívio diário feito de sincera camaradagem.
Por isso, foi com grande surpresa que em 1963 se publicou a primeira edição dos Poemas de Edmundo de Bettencourt (col. "Poetas de Hoje" da Portugália) pela atenção lúcida e clara amizade de Herberto Helder, que os fez acompanhar de uma introdução em que apelava à melhor compreensão pela forma pessoal e singular como o Poeta sabia estar na vida e ser um dos poetas que mais silenciosamente ficou (e ainda hoje permanece) no seu canto, sem ao certo deixar de se interrogar: - "De mim o que ficará?"
Mas, à distância de tantos anos, sabemos ainda como do Poeta de O Momento e a Legenda é uma destacada referência na nossa poesia depois de Orpheu, e ser, na opinião então defendida por Herberto Helder, "uma das pouquíssimas vozes modernas entre o milagre de Orpheu e o breve momento surrealista português", porque foi a partir daí "que alguma coisa nova e bela pôde surgir na poesia portuguesa. Talvez então se conceda a Edmundo de Bettencourt, e a alguns mais, o lugar de relevo que é seu". Dito isto em 1963, e em face das reacções críticas que recaíram mais sobre o seu prefácio (que agora também volta a ser incluído nesta edição), é claro que Herberto Helder tinha razão (e ainda hoje a tem) e por isso no post-scriptum que acrescenta reafirma: "Verifico mais do que suporto verificar que se pega em tudo pelos lados de fora, e se não vê aquilo que esperava ser pegado e visto pelos lados de dentro. Ora isto não põe muita fé nas transformações verdadeiras, e parece-me que Edmundo de Bettencourt escreveu os seus trinta poemas expoentes para aqueles tais que ficam em casa com a pouca poesia que se vai exorbitando. E nada há que nos valha, nada para dizer".
Mas, na saudade e memória que guardo de Bettencourt, ainda o oiço cantar-me, num murmúrio de paz e desencanto, talvez de nostalgia e lamento:

Fiel à vida? Sim,
mas não a um mundo
onde a não encontrei.
E quanto mais assim,
de mim
menos contrito morrerei!

Serafim Ferreira

Edmundo de Bettencourt
POEMAS
Introdução de Herberto Helder
Assírio & Alvim / Lisboa, 1999.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo