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Tradições e Paradigmas

1. O castigo corporal foi proibido nas escolas privadas do Reino Unido, desde o passado dia 1 de Setembro. É caso para felicitações, mas é surpreendente que um país considerado porta bandeira dos direitos civis só agora tenha suprimido esse resíduo de barbárie. Resíduo que subsistiu nas escolas públicas inglesas até há apenas 12 anos.
Desde 1987 que o sistema de ensino público em Inglaterra estava livre do método pedagógico mais doloroso: o castigo corporal. Mas as escolas privadas conseguiram, nesse ano, defender o seu suposto direito a aplicar os métodos educativos que quisessem, com o argumento de que as crianças e jovens estavam sob a sua tutela por livre vontade dos pais, os quais conheciam as suas regras internas. Agora, por fim, o governo trabalhista acaba com esta tradição que, longe de constituir um sinal distintivo de britanidade, como pretendem os seus defensores, não é outra coisa senão o reflexo da velha ideia de que "a letra entra melhor com o sangue".
Apesar da publicação da medida, uma parte significativa do ensino privado inglês, em particular o confessional, não se dá por vencido. Cerca de quarenta escolas protestantes já afirmaram a sua intenção de levar o governo inglês ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Segundo estes dirigentes escolares o governo não respeitou "o direito inalienável dos pais a educar os seus filhos como melhor lhes pareça" e, por isso, não a encontrando internamente vão procurar justiça fora do país. Para lá deste argumento os defensores dos castigos corporais vão juntando outros: "o governo confunde uma bofetada dada com carinho por um professor que gosta e respeita o aluno com o abuso de menores"; (?) "os pais dos nossos alunos são partidários do castigo corporal pois este evita muitos dos males que afectam a juventude dos nossos dias, juventude que carece de modelos válidos"; (?) "os alunos castigados por um professor que normalmente os trata bem sabem que ultrapassaram os limites do tolerável. Na verdade, o castigo físico é a melhor forma de os transformar em cidadãos responsáveis".
Naturalmente existem, e de longa data, os críticos da reguada e da bofetada. "O castigo corporal pertence a outra era", dizem alguns, enquanto outros não se cansam de chamar a atenção para o facto, aparentemente consensual, de que "uma bofetada nunca é carinhosa". E todos estes críticos do método da bordoada vão chamando a tenção para o facto de, ao fim e ao cabo, os alunos surrados serem sempre os mesmos.
É evidente que este acontecimento, que não foi ou foi notícia breve na grande comunicação social, no início de Setembro, levanta algumas questões para lá da defesa dos fundamentais direitos da criança. Suponho que um acontecimento como este, para além de nos aguçar a curiosidade em saber o que sobre este tema se passa noutros países e continentes, poderia ser pretexto para um interessante debate entre o sector pedagógico dos defensores do antiautoritarismo radical ? que tanta energia nos gastou nos anos setenta ? e os sectores pedagógicos que continuam a pensar que a autoridade dos professores não existe fora do quadro de uma qualquer forma de violência sobre as crianças e os jovens. Poderia, em suma, ser pretexto para uma reanálise dos regulamentos disciplinares das escolas e sobre a sua relação com o fenómeno do clima de violência que as afecta (ao que parece em crescendo). Mas não vamos hoje por aí. Registemos, por agora, que o facto de qualquer coisa ser moderna ? ou pós-moderna ? não significa , só por isso, que estejamos perante um avanço da humanidade, mas o facto de ser tradição também não. O castigo corporal é uma tradição da escola britânica, gritam alguns dos seus defensores, mas é então necessário não esquecer que nada é mais tradicional do que a ignorância e o fanatismo, e parece que ambos regrediram um pouco nesta medida tomada em Setembro pelo governo inglês.

2. Um outro acontecimento que não foi ou foi apenas pequena notícia ? em Outubro ? nos grandes meios de comunicação social, diz respeito à morte anunciada de Mumia Abu-Jamal para o próximo dia dois de Dezembro.
Mumia Abu-Jamal é um preso (considerado, por alguns, preso político) afro-americano dos Estados Unidos, que desde 1983 permanece no corredor da morte numa prisão da Pensilvânia. Nascido em 1954, em 1968 fez parte do grupo que fundou a secção de Filadélfia do Partido das Panteras Negras. Jornalista, nos anos 70 desenvolveu intensa actividade denunciando violações dos direitos civis das minorias étnicas, bem como o racismo e as atitudes de repressão levadas a cabo quer pela polícia quer pelo município de Filadélfia. Por esta sua actividade Mumia Abu-Jamal recebeu, entre outros, o prémio das Rádios Públicas e foi apelidado em muitas regiões do país como "a voz dos sem voz". No dia nove de Dezembro de 1981, Abu-Jamal, foi tiroteado por policias de Filadélfia, posteriormente detido e acusado do assassinato de um policia. Nos seis meses seguintes foi sujeito a uma farsa judicial ? sem as normais garantias de defesa ? e em três de Julho de 1982 foi sentenciado à morte.
Desde então Mumia Abu-Jamal luta pela revisão da sentença a que foi sujeito. Apesar da evidência de que provas apresentadas contra si eram falsas foram-lhe recusados todos os apelos, o último dos quais no dia quatro deste mês de Outubro. Várias organizações, quer nos Estados Unidos quer noutros países, desenvolveram uma intensa campanha para impedir a execução deste homem e a revisão judicial do seu processo. Apesar destas movimentações o silêncio da grande comunicação social é ensurdecedor.
A pena de morte é também uma velha tradição nos Estados Unidos da América e em variadíssimos países deste mundo. Uma tradição não apenas dos países que discursam sobre a bondade da democracia representativa, mas também dos que nem sequer se dão ao trabalho de discursar sobre a democracia e ainda dos que afirmam que a sua democracia é popular e exercida em nome do povo e para o povo.
Como se disse, a respeito da tradição da pedagogia da palmatoada, também para a tradição da pena de morte se ela fosse abolida regrediria o medo, o fanatismo, a impiedade e a ignorância.

3. O exemplo destes dois acontecimentos, entre tantos outros que este mês não mereceram ser notícia, dão razão a uma recente afirmação de Eduardo Prado Coelho, que num seu texto recente, a propósito de outra coisa, afirmava que "aos órgãos de comunicação social só lhes interessa a espuma dos acontecimentos". E é este interesse pela espuma dos acontecimentos e pela escolha criteriosa e classista da mesma que justifica que a Inglaterra da palmatória e a América da pena de morte sejam tidas como paradigmas da mais conseguida democracia e dos direitos dos povos. É este interesse e estas escolhas que fazem a opinião e destroiem (ou constroiem) os novos valores. A escola tem por isso, também aqui, algo a fazer, como seja o de não deixar cair a permanente desmontagem do papel da grande e da pequena comunicação social e dos apoios que cada uma merece. Vale a pena tentar entender quem nos acorda e nos adormece.

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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