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Cidade, Espaços de Vida, Ambiguidade de Imagens

Nunca na história do homem, a cidade foi submetida a um ritmo tão rápido de profundas transformações, evidentes tanto no plano físico como económico, social, cultural e ambiental.

O quadro da cidade, vivido ao ritmo duma vida lenta, à velocidade do peão e do eléctrico, de funções pouco diferenciadas tanto na sua natureza como na sua repartição geográfica, reunindo no seu centro todas as tarefas, comerciais, administrativas, residenciais, recreativas ou culturais é, de há muito, coisa do passado.

Poucas décadas volvidas e o contraste com a paisagem de outrora é imenso. Caracterizada por uma mobilidade extrema das populações e dos bens de consumo, pela rapidez e continuidade da construção, pela falta de ordenamento do espaço público, ou da melhoria da qualidade da vida urbana, a cidade vive actualmente uma diversidade de problemas cuja origem está associada à crise que tem invadido a sociedade nas últimas décadas. Atingida por vagas de migrações opostas - uma centrípeta, vinda das zonas rurais para a grande metrópole, outra centrífuga, do centro da cidade para as periferias para aí formar os "subúrbios" - ela vê-se dum dia para o outro sem pessoas, com um fardo financeiro que a enfraquece e obrigada a servir as massas anónimas vindas quotidianamente da periferia para dela se servirem de bens e serviços e quase nada deixando na sua passagem.

A função comercial que representou outrora o papel de "prima dona", marcando todos os humores, todas as modas, não o é mais, sendo actualmente suplantado pelas funções dos serviços. A cidade contemporânea é cada vez mais dependente da burocracia e da finança.

O ritmo do seu coração, ligado anteriormente à marcha do peão, está agora submetido ao regime impulsivo do movimento dos automóveis que ocupam as suas artérias e a sufocam com poluição e barulho. Congestionada, atravessada durante o dia pelas populações a caminho ou de saída dos empregos ou ocupada por gentes de negócios. Chegada a noite o seu corpo muda de roupa. Os seus lugares estratégicos de divertimento passam a ser animados por grupos de forasteiros que a invadem, qual necrópole vazia dos seus habitantes, para nela usufruirem, à sua maneira, as suas actividades recreativas e culturais.

Estas e outras formas de descobrir a cidade permitem articular e multiplicar possibilidades de troca, proporcionando oportunidades de integração e sociabilização. Elas representam um espaço de liberdade e de civilidade para os seus utilizadores.

Mas o despertar da consciência da cidade é outra coisa. É o salvaguardar da sua história, da sua cultura, do seu património, da sua paisagem, da reconquista do espaço público para uso colectivo, da constituição de redes de espaços verdes e abertos, etc. Tal pressupõe o seu renascimento, recuperando e revalorizando as áreas urbanas marginalizadas, degradadas e monofuncionais. Revitalizando o uso do sistema de transportes colectivos, das infraestruturas urbanas, da qualidade estética, dos elementos de referência do ambiente, da defesa da identidade dos lugares, da criação das condições de segurança, do reforço dos laços locais, da compatibilização e parceria de interesses públicos e privados.

Garantir a qualidade de vida aos cidadãos e o desenvolvimento durável do território, são duas das principais funções da cidade; todas as outras são dependentes ou complementares. Uma acção eficaz, exaustiva e global, tendo em vista a melhoria do bem estar, exige uma nova definição dos papéis, dos actores, dos objectivos, das estratégias e dos necessários meios para assegurar os seus fins. Para o efeito, uma das tarefas das populações urbanas é reflectir e participar nas decisões que entendem dar aos lugares que habitam. A cidade é obra de todos e em especial da sua população; uma população interessada, esclarecida, advertida e vigilante. A cidade contrariamente à prática existente não deve continuar a ser unicamente obra dos eleitos locais, dos urbanistas, dos comerciantes, dos engenheiros, ou dos proprietários de terrenos e agentes imobiliários. A cidade deve antes de mais ser expressão duma vontade, dum ideal colectivo, e não uma máquina cega que se dirige para um lugar ou para outro em função das pressões de interesses políticos, imobiliários ou financeiros.

A nova ordem urbana faz-se para e com os cidadãos, que directa ou indirectamente, de forma individual ou organizada em grupos de cultura ou de cidadania, se especializam e diversificam em vários domínios, contribuindo desta forma para ajudar a compreender e despistar as causas dos problemas e a sugerir soluções que promovam o interesses comum, quer dizer o bem estar geral dos que nela habitam. O poder autárquico tem que se habituar à democracia urbana, à partilha da reflexão, à herança das novas funções e valores, bem como dar satisfação às necessidades sociais, culturais ou recreativas dos cidadãos. A cidade precisa de renascer, de se revitalizar, de se humanizar, de se dirigir a todos os grupos sociais. O espaço público, como lugar democrático e acessível a todos, é o lugar por excelência para desenvolver os programas ou edificar os equipamentos de carácter social, cultural, e recreativo. A cidade do futuro quer-se aberta e participativa. A explicação pedagógica sobre a sua estratégia, em matéria de progresso económico, social, cultural ou ambiental, é um dever público. Só explicando e fazendo compreender os caminhos delineados para o futuro, a sua ligação a outras redes e a outros territórios, bem como os seus novos papéis é que ela poderá ter a participação interessada de todos os actores e tornar-se mais humana. Voltar a atribuir-lhe um papel integrador e dinamizador de forma a se poderem desenvolver territorialmente outro tipo de ofertas e de competências é fornecer parte das respostas necessárias e eficazes para preparar o caminho para bem aceder, sem ambiguidades, ao século XXI.

António Mendes Lopes
Centro Estudos Geográficos / UL
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal
António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal

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