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Flores Para Quem?

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1958, no filme "La Violetera" Sarita Montiel canta. "Compre usted este ramito/ Que no vale más que un real/ Compre usted este ramito/ Compre usted este ramito". A ceguinha, em traje de sevilhana (que não de luzes). passeia uma cesta de violetas que procura vender para ganhar a vida.

A vida também se ganha com flores.

Muitos anos antes, no reinado de D. Dinis, em Coimbra, Dona Isabel de Aragão (mais tarde, Rainha Santa), andava a distribuir pão pelos pobres da cidade quando foi interpelada pelo monarca, seu marido, a perguntar o que levava no regaço.
- São rosas, senhor...
E o pão se fez em rosas veremelhas.

1969. Em Coimbra viveu-se uma das maiores crises académicas de sempre que transformou a cidade num sítio sitiado, encerrou a Universidade e abalou o regime. Crise que também teve acções de marketing e flores
Um dia (4 de Julho), os estudantes desarmados ofereceram flores, na 'baixa' de Coimbra, a quem passava. Foi um protesto diferente que acabou por ficar registado na música e na poesia.
"Flores para Coimbra". Música de Joaquim Fernandes (hoje professor na Universidade Fernando Pessoa, no Porto), letra da Manuel Alegre, para a voz de António Bernardino e com apoio instrumental de guitarra de António Portugal

Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.

Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.

Que mil flores floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.

1974. Na madrugada de 25 de Abril, Portugal acordou diferente. Alguns soldados não tinham balas nem cigarros. Uma vendedora de flores, Celeste, também não tinham cigarros para dar aos soldados, mas tinha cravos, cravos vermelhos. E assim se baptizou uma Revoução.

1969.Woodstock . Estados Unidos da América. Vietname. A paz chamava-se flowerpower . Milhares d jovens, contra um ataque bélico que consideravam sem sentido e injusto, para qualquer uma das partes, mas, sobretudo, para os seus concidadãos, elevaram o "poder das flores", fizeram rituais com elas, além dos opiáceos, que os adormeceram para a violência que não queriam ver e para a sua sociedade, que não conseguiam entender.
A noite seguiu-se ao dia, o dia seguiu-se à noite. E Hugh Romney, o proprietário da Quinta Hog onde decorreu a festa, anunciou: "Amigos, o que nós temos em mente é o pequeno-almoço na cama para 400 mil pessoas.". Entretanto, helicópteros do Exército deixaram cair comida, mantas, primeiros-socorros - e flores. Bebés nasceram e ninguém foi assassinado. Por um instante, pareceu que a "nação Woodstock" podia prevalecer.

um valor acrescentado

Os preços das flores variam em função do local de venda, do estatuto do vendedor, do tipo de flores. Nas cotações do Mercado Mercoflor, a 17 de Março, as rosas vendiam-se entre os 600 escudos e os 1700$00. No Mercado do Bolhão um pé de rosa custava 300$00.
Mas hoje é comum ver flores à venda em bares e discotecas. Um pé de rosa com papel 'slofan' pode custar 500$00.". Também é normal encontrar flores à venda à porta dos hospitais, na hora das visitas.
Há também os casamentos. "Em 100 noivas só duas ou três é que escolhem rosas vermelhas para o ramo. Agora vão mais para o bege, o branco ou o cor-de-rosa. Já nem querem saber da flor de laranjeira", diz uma florista. E, no entanto, "a flor enriquece esteticamente a imagem", como diz um fotógrafo.
Flores para quem? Oferecem-se à mãe de um recém-nascido e à memória de quem morre... Mas também se usam em reuniões , nas igrejas e nas capelas... Para dar à pessoa amada. De acordo com a assessora de Imprensa da Universidade Católica (Viseu), Cláudia Sequeiros, "no parlatório, por norma, usamos flores altas para pôr à frente e ficarem visíveis. Na mesa pomos um centro grande. Quando findam as cerimónias, se não há mais nenhum evento, os arranjos são aproveitados para a capela da Universidade."

"Ó Rua do capelão,
juncada de rosmaninho,
eu beijo as pedras do chão
se o meu amor vier cedinho.

Tenho um degrau no meu leito,
para o meu amor subir.
Vê lá amor, sobe o com jeito,
para que o meu coração não se desgarre do meu peito.

Tenho o meu destino marcado
desde a hora em que te vi.
Ó meu cigano adorado,
viver abraçada ao fado,
morrer abraçada a ti."

1999. Teremos flores para a Jugoslávia? Teremos flores para Angola? Teremos flores para Timor? Que cantaremos neste Maio de fim de século, de fim de milénio. Que flores vamos escolher? Para quê, para quem?

 

Do Sagrado ao Profano

Na Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, a festa começa a 20 de Agosto com a manifestação dos pescadores, em honra da sua padroeira. A população faz tapetes de serrim multicolorido para as ruas da cidade e, em colaboração com a Confraria do Mar da Senhora da Agonia, organiza uma procissão. Os andores (Senhora da Agonia, Senhora dos Mares, e São Pedro) são embarcados e levados para o mar e quando regressam a terra passam por ruas ornamentadas com flores, a fazer desenhos de figuras geométricas com motivos marítimos.
A origem desta tradição vienense remonta, disse Joaquim Ribeiro, "sensivelmente, ao ano de 1700, mas a festa com flores e serrim a ornamentar e decorar as ruas tem apenas 30 a 40 anos. Esta manifestação de fé e devoção dos pescadores tem vindo a evoluir ao longo destas últimas décadas". O responsável explicou ainda que "a capela foi sempre o ponto de referência e de devoção dos pescadores. As festas com as flores e a procissão dos andores até ao mar são a forma da evolução da sua fé.
A sete quilómetros de Viana do Castelo, em Vila Franca do Lima, celebra-se, no segundo Domingo de Maio, a Festa das Rosas. A população sai à rua em procissão. As mordomas colocam sobre as suas cabeças os "cestos floridos", também ditos "votivos", que pesam cerca de quatro arrobas (60 a 70 quilogramas) e medem entre 80 centímetros e um metro. Estes são bordados, exclusivamente, por mãos masculinas, e, as profissões dos artistas são as mais diversas, do lavrador ao funcionário público, do engenheiro ao operário especializado.
A origem da Festa das Rosas reside na tradição de as mordomas levarem flores a Nossa Senhora do Rosário. Era uma das obrigações estatutárias da Confraria de Nossa Senhora do Rosário (fundada em 1622), um velho voto gizado por frades beneditinos que obrigava as donzelas católicas à mordomia de ofertarem flores à santa.
O ponto alto da festa é, precisamente, o "Cortejo das Mordomas", ricamente vestidas com o melhor que têm de galas e louçainhas, ostentando garbosas os peitos coruscantes da mais fina ourivesaria minhota. Transportam à cabeça os "cestos floridos", indo ainda desfilar nas procissões.
No final, os cestos são transportados em cortejo para a Igreja Paroquial e oferecidos a Nossa Senhora, em cerimónia religiosa, onde o orador nomeado enaltece esta tradição secular, louvando a mordoma e todos os que de algum modo contribuíram para a beleza dos "cestos votivos".

com segredos de enramação

Em Campo Maior, cidade alentejana que faz fronteira com Badajoz (Espanha), ao invés de Vila Franca, não encontramos uma única flor natural. Mas o espectáculo das Festas das Flores de Papel não lhe fica em nada atrás. Organizada por uma Associação com o mesmo nome, um dos seus responsáveis, José Manuel Muacho, afirma que "são festas centenárias - datam de 1823 - que terão começado na evocação de São João Baptista, porque se fazia contrabando de café entre Campo Maior e Espanha. Como tudo corria bem, evocavam o santo e faziam as festas. Isto é o que consta nos documentos.".
A data da sua realização é decidida por todos os moradores da cidade. José Muacho adiantou que as festas "não têm período de feitura determinado, pois há muito trabalho. Mas, em média, realizam-se de três em três anos, têm lugar no início de Setembro, e duram aproximadamente uma semana. As últimas 'festas' tiveram lugar de 29 de Agosto a 6 de Setembro, em 1998. A área engalanada de Campo Maior é de 110 mil metros quadrados (118 ruas), ornamentados com 32 toneladas de papel, ou seja, com milhões de flores.".
O responsável explicou que "a própria Associação oferece os materiais da feitura: papel seda (para fazer as flores) e papel plissado (para fazer caules e folhas); cola; arame; madeira; entre outras coisas", e acrescentou, "além disso, é artesanato puro, sem nada de profissional.".
Leva um ano a preparar o cenário das "festas de Campo Maior, de cariz popular, participando nelas muitos milhares de pessoas. A sua feitura enquadra-se em toda a zona histórica e em algumas das ruas novas. Cada rua tem um 'responsável' - o 'cabeça da rua' - que começa a fazer o 'desenho', isto é, a parte decorativa, havendo um segredo (cores e tema da 'enramação') entre os seus moradores. O mistério só é desvendado na noite em que se começa a 'enramar' as pessoas da rua e as próprias ruas", revelou José Muacho.
Na "noite da enramação" cada rua sai com o seu tema, a fim de "enramar" a sua rua com flores de papel. O "segredo" faz com que cada rua desconheça a "enramação" (parte decorativa) das outras, e vice-versa. O programa das festas é independente da sua visão estética. Ouvem-se então as cantigas características da terra - as "saias" (rimas em que pessoas de várias ruas cantam com um som próprio). Quando os moradores saem à rua para dar uma volta à cidade e encontram "adversários", cantam as "saias" em tom de "desgarrada", com as quais também se fazem espectáculos durante as festividades.

...e devoção a Corpus Christi

Em Vila do Conde realiza-se a Procissão "Corpus Christi" (ou do "Corpo de Deus"). De quatro em quatro anos, sempre a uma quinta-feira, andando à volta do dia 10 de Junho. A última foi em 1997, e, a próxima será em 2001, a 9 de Junho. Não se realiza todos os anos porque, segundo o assessor do presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, Saraiva Dias, "envolve muitos milhares de pessoas".
O "Corpus Christi" é organizado pela Confraria do Santíssimo Sacramento, a respeito da qual, segundo o seu juiz, Carlos Costa, há um "documento que indica mais ou menos o ano de 1700 sobre a sua existência e que fala dos 'tempos imemoriais da Confraria'. ". Quanto à origem da procissão, Carlos Costa afirmou que esta "já se fazia antes dos tempos da Confraria, organizada pelos Paços do Concelho, essencialmente, com a participação de artesãos, mas, também, de toda a população. Quem não participasse teria de cumprir a pena ditada perante a falta.". Quanto à razão de ser do "Corpus Christi", Saraiva Dias adiantou que é "a devoção ao corpo e ao pão de Cristo que motiva estas festas.".
Saraiva Dias explicou que "as flores são colhidas em toda a região Norte (as pessoas vão muito longe - até onde elas estiverem!), porque o volume necessário para cobrir o centro histórico de Vila do Conde (a procissão faz um percurso de cinco quilómetros nesta zona) é de toneladas de flores, essencialmente campestres.".
Cada rua tem o seu "cabeça" (responsável) e, juntamente com a população, projecta o desenho do seu "tapete" - em função do qual escolhe as cores das flores a utilizar na feitura -, que consiste em figuras geométricas (motivos repetitivos), traçadas a carvão no papel que será colocado no chão. Em cima deste coloca-se um molde de madeira e folha flandres, que os habitantes preencherão apenas com pétalas de flores. Após montado o "tapete", os habitantes, para não destruírem o desenho, retiram, gentilmente, o molde. Em certas ruas os motivos decorativos vão desde o Cálice, a figuras de Cristo, até à Sagrada hóstia.
O processo de construção dos desenhos é moroso. Durante 15 dias a população de Vila do Conde faz serões em garagens ou em casas particulares, desfolhando, pacientemente, as flores, pétala a pétala. Saraiva Dias disse que "durante a noite que antecede o 'Corpus Christi', a população põe em prática os projectos dos desenhos, os quais estão prontos na manhã seguinte. À tarde - concluiu - são desfeitos pela Procissão.".
Em Vila do Conde, o "Corpus Christi" tem quadros que representam a vida de Cristo, sem a presença de um só andor. Como todas as procissões do "Corpo de Deus", há memória da sua feitura desde o século XV, "mas sempre com grande solenidade", afirmou o assessor (...). Na ilha de São Miguel (Açores), realiza-se a Procissão do Santo Cristo, que, segundo Saraiva Dias, "tem uma dimensão idêntica à de Vila do Conde.".


  
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Teresa Nicolau
Jornalista
Teresa Nicolau
Jornalista

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