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ABRIL - 25 vezes 25

1. Manhã cedo, as pessoas dormiam, as estruturas ainda não se sentiam abaladas, estava em marcha o movimento das tropas que entrariam na capital e derrubariam, em poucas horas, o regime fascista estabelecido em Portugal desde 28 de Maio de 1926. Pela rádio ouviam-se os primeiros comunicados, depressa toda a gente corria para a rua, todos sentir de perto o rebentar das costuras do velho fato salazarista-caetanista que dava de si por todos os lados. Manhã cedo de um dia fresco de Abril, manhã radiante a anunciar aleluias de júbilo em todos os rostos, manhã vitoriosa desde os primeiros passos pela madrugada. Mas, pouco ou nada habituados a essas situações de pânico ou de espanto, as pessoas interrogavam-se perante os comunicados pouco claros para a ansiedade que dominava, todos queriam saber de que lado estavam as forças, se o golpe era de direita ou de esquerda, sim, porque depois do fracasso das Caldas em 16 de Março, pensava-se que seria mais uma tentativa militar abortada e depressa reprimida pelas forças da PIDE ou da GNR. As pessoas espalhavam-se por onde era possível - ruas do Ouro, Augusta, Prata, entre o Rossio e o Terreiro do Paço, que era ali o cenário principal dos acontecimentos, com um exército em pé de paz e não de guerra à espera que os ventos do Tejo fossem favoráveis e as tropas pudessem levantar o cerco, fazer o cerco noutro ponto da cidade, nesse largo do Carmo de viva memória. E, aos sinais das primeiras notícias que se confirmaram, as gentes amontoaram-se um pouco por toda a parte, diziam "é o Spínola que está por detrás de tudo isto", e assim o dia se escoava lento, grande era a pressa que havia de que tudo se confirmasse e resolvesse, "onde param o Tomás e o Marcelo?" perguntava-se no meio do mar de gente que enchia o largo do Carmo. Nada se sabia ao certo, esperava-se que tudo se arrumasse, o ajuste de contas fosse feito, sem sangue e cravos vermelhos na ponta das gêtrês pelo sangue que não correra, a não ser nos tiros dos carrascos da PIDE que, humilhados e derrotados no reduto da António Maria Cardoso, reagiram como sempre reagem os acossados: aos uivos, num derradeiro estrebuchar raivoso, sem terem outra saída. Mas a verdade é que os tiros desses "pides" desesperados não abafaram as vozes de triunfo que logo se fizeram escutar: "Abaixo a PIDE! Assassinos! Assassinos!", e, caído esse bastião do regime fascista, o povo viu abrir-se o caminho de uma verdadeira cidadania que levou anos a conquistar.

2. Primeiro de Maio de 1974, dia memorável para quem o viveu e o sentiu, o soube saudar como jornada triunfante de confraternização, festa colectiva que arrebatou e comoveu toda da gente, velhos e novos, soldados e operários, camponeses e homens do mar, de mãos calejadas, que não podiam esconder os claros sinais de uma alegria inesperada. As gêtrês enfeitadas com cravos e rosas vermelhas, por entre ecos calorosos de um "saludo" chileno que de súbito se espalhara pelas ruas, cidades e vilas de um país que, quase à beira do abismo, ganhou novas forças e coragem para transformar em festa o que não estava ainda de todo definido: "O povo unido jamais será vencido!", mas pressentia-se que ganhava forma uma outra atitude de solidariedade ou tudo era feito para despertar reivindicações escondidas, embarcar assim no comboio de uma liberdade colectiva e gritar bem alto ser então possível viver em Portugal depois de Abril de 1974. E de imediato se travaram as lutas para a conquista das liberdades essenciais no caminho da democracia, que apenas tinha sentido se as colónias portuguesas da Guiné, Angola e Moçambique, Cabo Verde, Timor e São Tomé se libertassem do mesmo jugo repressivo e da guerra que lhes era imposta há muitos anos, por entre os muitos mortos que ficaram pelo caminho em luta pela sua emancipação e independência. E assim os partidos depressa se instalaram na cena política, muitíssimas foram as reivindicações de toda a ordem e em todos os sectores da vida portuguesa, numa vitória que se adivinhava difícil e sem que ninguém soubesse ao certo se seria conseguida, porque no horizonte social e político depois do primeiro Governo Provisório logo se levantaram as sombras e os pesadelos contra-revolucionários. Claro, as lutas não pararam, os partidos reforçaram as suas posições, começaram a desenhar-se várias estratégias eleitoralistas no mapa político e assim aumentou a tensão entre as forças da esquerda e da direita, em lutas sem descanso, no desgaste das melhores perspectivas sociais, por entre canções de denúncia ou palavras de ordem espalhadas por toda a parte, na tentativa de segurar, alguns meses passados sobre a revolução de Abril, o que ainda permanecia como sonho e utopia da memória colectiva: "Só se pode querer tudo, quando não se teve nada" e ser então mais urgente "e fazer falta avisar a malta", ainda no eco das canções de intervenção e denúncia de José Afonso. E, se a liberdade se procurava nas ruas, no calor e entusiasmo de tantas lutas, é verdade que os anos se deliram e nem tudo foi conseguido, porque das chamadas conquistas de Abril tão propaladas em dias de grande euforia e entusiasmo muitas foram as que se perderam ou se esqueceram e tudo se recompôs no leque económico, social e político de outros interesses.

3. Porém, não dizemos, como Saramago, que Portugal seria o mesmo país com ou sem o 25 de Abril, agora que se multiplicam por 25 as vezes que a revolução foi celebrada. E, sem cuidarmos saber se o 25º. aniversário será agora comemorado com luzidio espavento e muita pompa, podemos lembrar os muitos sonhos que se perderam, ficaram pelo caminho, jamais poderão ser recuperados com a mesma pureza ou ingenuidade inicial, por parte de quem havia lutado contra o fascismo salazarista e sentiu, no correr destes anos, como tudo se perdeu por entre os dedos. Não, não é preciso inventar novas canções de protesto, novas palavras de ordem, novas formas de luta para que a revolução encontre o seu verdadeiro caminho e possa cumprir o muito que ficou por cumprir. Mas sempre foi assim. Somos um povo que apenas sabe fazer as coisas pela metade ou somos do oito e do oitenta, como aconteceu em Abril de 1974, mas alimentamos hoje em silêncio outros sonhos que nos projectem noutro sentido e defesa de novos valores, calamos tantos protestos e anseios, ouvimos indiferentes os discursos de Portas ou de Marcelo e as conversas almofadadas de Mário Soares, enfim, continuamos à espera que nesta hora de comunidade europeia e protecção de escondidos interesses nos conduzam por outros caminhos de salvação e de afirmação, mesmo à custa de uma identidade que aos poucos se perde. Mas talvez avancemos a passo de mula ruça, por caminhos bem difíceis e pedregosos, lá vamos cantando e rindo e de coração ao alto, nesta quadra de se celebrar o 25 de Abril que é de hoje e não foi o de há 25 anos, claro que não, ainda na tão proclamada divisa de Pessoa de que

outros haverão de ter
o que houvermos de perder.

Serafim Ferreira


  
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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