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Artesantao ou Arte de facto?...

(ou quando o engenho e a arte ocupam a rua?)

Quem decidir apostar parte do seu tempo livre numa passeata de (re)conhecimento pela beira-rio portuense - aproveitando os magníficos dias solarengos, que se deseja continuem ou regressem rapidamente, para se reaproximar ao Douro e apreciar os trabalhos de remodelação levados a cabo por ocasião da Cimeira Ibero-Americana realizada na Alfândega do Porto -, há-de reparar, seguindo em contra-corrente rumo à Praça da Ribeira, e entrando pelo Muro dos Bacalhoeiros, num espaço de venda com o seu quê de surpreendente particularidade (ao menos, para os mais distraídos).
Aberta sobre o rio, a porta número 138 dá entrada para uma 'boutique' de produções/criações artesanais - adiante tentaremos esclarecer a distinção. Ali, podem ser adquiridas desde peças decorativas de maior ou menor porte e nos mais diversos materiais até ao mais afectuoso brinquedo de madeira ou lata, passando por evocações dos tradicionais lenços de namorados, actualíssimos mobiles, adornos de moderno design e muitas outras (in)utilidades - para além de numerosas colecções de postais e uma especializada selecção de livros com temática artesanal.
Perguntar-se-á, então, porque é que a Arte Facto - assim se chama o espaço - é diferente da maioria das lojas que vendem artesanato? Imediatamente, e sobretudo, porque a selecção dos produtos comercializados é variada e extremamente rigorosa, garantindo a sua genuinidade - todas as peças expostas são autenticadas pelo Centro Regional de Artes Tradicionais (CRAT), através de uma etiqueta que identifica a respectiva origem, materiais empregues e autor/produtor. Depois, porque não se sente a 'mão' dos intermediários do circuito comercial, uma vez que os preços praticados são controlados e acordados com os respectivos autores/produtores. Finalmente, a loja aceita encomendas de peças fora de série, garantindo a sua produção e entrega ao potencial cliente.
[Abra-se aqui um parêntesis para informar que, recentemente, a Arte Facto passou a promover exposições/venda temáticas com o intuito de divulgar novos artesãos e oferecer uma maior diversidade de produtos. A primeira, foi inaugurada no dia 25 de Março e prolonga-se até 30 de Maio. Intitulada "Instrumentos Musicais Tradicionais Portugueses", estarão disponíveis exemplares de diversas famílias: aerofones (assobios diversos, flautas e gaitas-de-fole), cordofones (bandolins, cavaquinhos, guitarras, instrumentos de percussão e violas diversas), idiofones (castanholas, tréculas e reque-reques) e membranofones (adufes, bombos, pandeiretas e sarroncas). O horário de funcionamento da loja não parece problemático para uma visita: de terça a sexta-feira, entre as 10-12 horas e as 13-18 horas; sábados e domingos, das 13 às 19 horas; encerra às segundas-feiras e dias feriados.]
Mas a Arte Facto não é apenas um simples ponto de venda, funcionando como montra de uma estratégia mais ampla desenvolvida ao nível do CRAT, com o objectivo de salvaguardar, promover e divulgar as artes tradicionais praticadas no Norte do país. Defendendo que o artesanato é uma actividade que compreende dimensões artísticas e económicas e que não deve reduzir-se às concepções tradicionais, o centro (Rua da Reboleira, 37) promove e apoia iniciativas de formação técnico-profissional, investigação, divulgação e representação de artesãos no país e no estrangeiro, para além de manter um gabinete de apoio ao artesão.
Para um público mais alargado, e para além da loja, o CRAT disponibiliza uma base de dados informatizada, um centro de documentação, um centro de estudos e informação, iniciativas de animação cultural (que as escolas podem aproveitar) e oficinas de formação onde são ministradas diversas técnicas a vários níveis, da sensibilização ao aperfeiçoamento - a frequência destas oficinas comporta custos diferenciados e implica inscrição prévia, pelo que os eventuais interessados devem contactar o centro (332 00 76, da rede do Porto). Especial relevo parece merecer a recente abertura de oficinas livres de cerâmica e têxteis, onde o público em geral pode usufruir de instalações devidamente equipadas e do apoio de um monitor - mediante o pagamento de uma taxa mensal de utilização, estas oficinas podem ser frequentadas de segunda a sexta-feira, entre as 17 e as 20 horas, e estão especialmente vocacionadas para atender pessoas que já disponham de alguns conhecimentos. Outra vertente de abertura ao exterior é garantida pela edição de livros temáticos, monografias, relatórios técnicos e, desde 1997, uma revista trimestral - «Mãos».
Tudo isto em defesa do artesanato. E desengane-se quem pensar que é muita parra para pouca uva. O simples folhear do primeiro número da «Mãos» dá, de imediato, a noção do intrincado imbróglio em que se mete quem pretenda avaliar do estado da 'nação' do artesanato.

Artesanato urbano, moderno, criativo ou...?

Na verdade, falar de artesanato, hoje, remete para uma dimensão substancialmente distinta daquela que, antes do aparecimento das chamadas grandes superfícies comerciais, era bem evidente nos tradicionais espaços de mercadejar. O artesanato de hoje - e a multiplicação de feiras e exposições-venda um pouco por todo o país demonstra-o bem - é muito mais do que os galos de Barcelos ou os 'bonecos' das Ramalho, os barros de S. Pedro do Corval ou as louças negras de Bisalhães e Molelos, os bordados da Madeira ou as bengalas de Gestaçô...
O problema da existência de novas modalidades de artesanato começou a colocar-se nos anos 80, quando as principais artérias das grandes cidades começaram a ser 'invadidas' por jovens "herdeiros de algumas referências centrais da cultura juvenil dos anos 60" - como os caracteriza Augusto Santos Silva [«Novos artesãos portugueses: quem são, o que fazem?», CRAT, 1989]-, apostados em vender, sobretudo, adornos produzidos com base em materiais metálicos pobres.
Actualmente, por força das evoluções tecnológicas e das alterações dos padrões estéticos, bem como da transformação do perfil cultural dos artesãos - a que não será estranho, também, o alargamento da escolaridade básica obrigatória - e da crescente exigência crítica dos consumidores, as produções artesanais deixaram de estar confinado ao estreito conceito de peças utilitárias produzidas segundo técnicas e modelos tradicionais e ganharam dimensão artística-decorativa, sobretudo aquele artesanato que é produzido em meios urbanos e que parece ter já alcançado uma legitimidade específica, a ponto de se falar em 'artesanato urbano' ou 'artesanato moderno'. Ou em 'artesanato criativo', num sentido ainda mais lato.
Esta justaposição urbanidade-modernidade-criatividade parece ser, aliás, um dos óbices à afirmação da identidade profissional dos novos artesãos. E mesmo entre os próprios interessados, a questão parece não estar muito bem resolvida, como o demonstra o já citado estudo de Santos Silva, com muitos deles a recorrerem a mais do que um designativo para se auto-identificarem profissionalmente - 'artesão artístico' ou 'designer artesão', por exemplo -, enquanto outros adoptam designações tão específicas como 'barrista' e 'artesão marceneiro urbano' ou tão generalistas quanto 'operador estético' e 'criador de formas'. Contudo, Santos Silva regista que a maior parte dos inquiridos se definiam como 'artesãos modernos', seguindo-se de muito perto os 'artesãos urbanos', os simplesmente 'artistas' e, finalmente, os simplesmente 'artesãos'.
Esta multiplicidade reflecte bem uma ideia expressa por Helena Santos no primeiro número de «Mãos», ao afirmar que o artesanato é "um campo que está longe de poder ser problematizado como homogéneo". De facto, segundo esta investigadora, apesar de o artesanato ser vulgarmente entendido como um todo, não deve perder-se de vista que esse todo é atravessado por diversas particularidades. Desde logo, a dimensão social do 'artesanato' e da 'arte'.
Seguindo de perto o pensamento de Helena Santos, facilmente se constata que à representação social da actividade artesanal - que "passa inevitavelmente pela ideia de ofício: modos de aprendizagem e de vida que se entretecem alimentando uma cultura de reprodução e preservação" - se opõe o valor simbólico dos objectos artísticos: "O valor da arte não é um valor funcional, mas um valor de signo, em que o signo é a própria assinatura do artista e criador". Assim se compreende que os novos artesãos, pelo menos alguns, estejam apostados em ver reconhecidas as suas produções como peças de autor, ainda que nem sempre únicas ou manifestamente diferentes, e valorizadas pela assinatura ou marca que lhes é aposta; e que, neste sentido, se afastem da cultura distintiva do artesanato tradicional - note-se, contudo, que também há artesãos tradicionais que caminham neste sentido, individualizando as suas produções ou, como refere Helena Santos, tornando-se "progressivamente criadores de obras" e que, por esta via, "têm vindo a adquirir nome próprio". Reciprocamente, sustenta a investigadora, é também o mercado que interfere na visão do artesanato como um todo, uma vez que se regista a tendência para o reconhecimento das obras pelo nome de quem as produz.
Ou seja, falando em produção artesanal ou produção artística, a sua sobrevivência parece depender, sobretudo, da qualidade dos produtos, eventualmente de uma re-funcionalização das peças e, obviamente, da capacidade de adaptação dos produtores às condições de um mercado cada vez mais exigente - ou, dito de um modo profissionalmente mais gratificante, da capacidade dos criadores influenciarem ou preverem quais as lógicas culturais e económicas que dominarão num determinado momento.

António Baldaia


  
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

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