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O que Está a Dar

Por cada semana que passa, através da televisão, os britânicos ficam a conhecer a vida íntima de mais uma dúzia de pessoas. Exemplos? Uma senhora de 50 anos que passa por ter muito menos idade graças às operações plásticas que fez para continuar sexualmente atraente. Um senhor de 70 e muitos anos que defende o nudismo como uma prática saudável e que exibe o corpo enrugado perante as câmaras. Um homem na casa dos 30 que tem um filho de uma desconhecida, gerado numa relação de uma única noite. Um homossexual que doou esperma a uma amiga lésbica para ela conceber os filhos de ambos, que são criados pela mãe e pela companheira dela, com as visitas diárias do pai.

Os responsáveis pelos canais de televisão garantem que são estas histórias que as pessoas querem ver. Baseiam-se nas audiências, apuradas através de técnicas cada vez mais aperfeiçoadas. Talvez a maioria das pessoas queira mesmo ver este tipo de histórias, exibidas através de documentários, um género televisivo que (ainda) é recebido pelos telespectadores como um produto realístico e credível. Eu acredito nas potencialidades do género mas começo a ter muitas dúvidas quanto à veracidade do que neles se conta.

No Reino Unido, a tradição de produção de documentários é grande. O sucesso do género permitiu que surgissem várias produtoras independentes, que vendem os seus trabalhos aos canais de televisão. Uma análise rápida da programação mostra a quantidade de documentários que são exibidos. Mas a função que tem é muito mais de entretenimento do que educativa, muito mais de alienação do dia-a-dia do que de formação.

Num seminário recentemente organizado pelo Centro de Investigação das Comunicações de Massa, da Universidade de Leicester, um conceituado produtor de documentários dizia que nos dias de hoje já não consegue vender as histórias que vendiam há uma década atrás. As televisões já não querem documentários sobre qualquer tema. Tem um objectivo muito específico: retratos da vida íntima das pessoas comuns, polvilhadas com muito sexo. A excepção são os casos de doenças estranhas ou de gente com vidas recheadas de um sofrimento inimaginável. Estas histórias também vendem bem.

Por enquanto, os documentários de carácter intimista são uma fórmula de sucesso. E eu não tenho nada contra eles. Vejo-os. Mas fico sempre com a sensação de que a maioria das histórias é forjada. O tal produtor admite que a componente da realidade nem sempre é totalmente garantida. Dá o exemplo das histórias verdadeiras que quer contar mas em que os protagonistas não podem ou não querem dar a cara. Que fazer então? Publica-se um anúncio num jornal a pedir um indivíduo com as características do protagonista. Basta dizer que a pessoa escolhida vai participar num programa que será exibido na televisão e as respostas são aos quilos. O "actor" estuda o guião da história. Pede-se-lhe para ser o mais natural possível. Ele realiza o sonho de ser visto pelo mundo, o produtor vende mais uma história, o canal de televisão obtém um exemplar capaz de atingir bons níveis de audiência e os publicitários fazem as contas aos telespectadores que o vão ver e que, no entretanto, podem ser influenciados a comprar um determinado produto.

Para aquele produtor, isto é realidade encenada em forma de documentário. Para mim, isto é dramatização eventualmente real. Escrevo "eventualmente" porque me atribuo o direito de pensar que basta um pequeno passo para se chegar à encenação total. Se se recorre a "actores" que querem a glória por um dia sem se avisar o telespectador de que os protagonistas não são aqueles, o guião também pode perfeitamente ser inventado. Não se trata de lançar o descrédito total sobre os documentários. Mas começo a recear, sobretudo pela forma ligeira com que os limites éticos que começam a ser ultrapassados. Por dizer estas e outras, há quem me chame "purista".

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester /Inglaterra


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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