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A Universidade: Espécie Rara, Sempre em Risco

(sexto artigo de uma série de seis)

1. Há universidade e universidade e universidade

A solução PRÁTICA do "problema de Peirce" depende inteiramente, como vimos, da constituição e renovação intergeracional do que hoje se usa designar por "comunidade científica". Ora, como veremos, a comunidade científica - cujos momentos genésicos principais passámos rapidamente em revista no artigo precedente (cf. "A Página", Fevereiro 1999) - é a condição essencial para se entender os traços peculiares de uma instituição social nascida apenas no século 19, mas a que foi dado um nome superlativamente ambíguo: "Universidade".

Essa ambiguidade tem fundas raízes históricas. "Universidade" foi o nome dado a uma instituição escolar internacional do século 12. Esse nome foi usurpado por uma instituição nascida também na Europa medieval, nos finais do século 13 (chamemos-lhe "universidade-bis"), mas de tipo quasi diametralmente oposto ao da sua antecessora do século 12 (a "universidade" propriamente dita). Ora, foi este mesmo nome usurpado que foi atribuído, por sua vez, a uma novel instituição (chamemos-lhe "universidade-tris"), destinada, ela, a ocupar um espaço social completamente distinto do das suas duas antecessoras homónimas.

Esta enganadora homonímia tem sido uma fonte permanente de confusões, tensões e de conflitos. Entre os últimos, um é particularmente instrutivo. Refiro-me ao facto de a comunidade científica, condição básica de existência da "universidade-tris"- a universidade a que se refere o título destes artigos - se ter constituído à revelia da "universidade" do seu tempo: a "universidade-bis". É necessário, pois, clarificar este ponto, sob pena de não se perceber as diferenças qualitativas profundas que separam a "universidade" da "universidade-bis" e ambas as duas da "universidade-tris" (recorrendo, por agora, a este expediente terminológico para destrinçar os três conceitos de "universidade").

Para o fazer impõe-se, porém, uma alteração de planos. Tinha previsto escrever seis artigos, precedidos de uma "Introdução" e rematados por uma "Conclusão". Por inépcia, errei no cálculo inicial e vejo-me, agora, na necessidade de pedir para passar de seis para oito e protelar a "Conclusão" para o número de Junho deste jornal. Peço desculpa ao director e editores de "A Página" por eventuais embaraços decorrentes desta alteração. Aos leitores que me tenham vindo a dar o privilégio da sua atenção, peço-lhes um pouco mais da sua benevolência.

2. A Comunidade Científica

Como tarefa preliminar, convém dissipar um equívoco tenaz que paira em torno do termo de "comunidade científica". A expressão está hoje banalizada pelos meios de comunicação social, onde é correntemente empregue como sinónimo de "engenheiros-e-doutores a quem devemos as nossas mordomias tecnológicas - da TV ao radar, das análises de sangue às lentes de contacto, do frigorífico ao micro-ondas e assim por diante".

Essa é, porém, uma visão redutora. As inovações tecnológicas não surgem, há pelo menos dois séculos, como cogumelos depois de uma chuvada. O fenómeno atingiu na nossa época uma dimensão sem precedentes porque existem fontes subterrâneas que lhe fornecem nutrientes básicos. Uma dessas fontes é a que promana da comunidade científica. Falar de comunidade científica é falar, antes de mais, na existência tangível de um grupo de investigadores empenhados em expandir o conhecimento multidimensional do universo - incluindo nele o conhecimento, igualmente multidimensional, do próprio sujeito cognoscente : a humanidade - pelo recurso exclusivo ao método da veracidade a posteriori (ou método da investigação científica). Mas isso não basta. É preciso ainda que os membros de um tal grupo desenvolvam a sua actividade de investigação por forma não apenas a consentir mas a estimular a avaliação mútua, crítica e informada dos seus esforços, como consequência metapragmática do próprio método que perfilham e condição metateórica de progresso das suas próprias investigações particulares.

As duas coisas - quer (i) a existência concreta de indivíduos unidos por um mesmo propósito (descobrir a face oculta da realidade) e por um mesmo método de apuramento do que é real (o método da investigação científica), quer (ii) a sua adesão voluntária às práticas de comunicação e discussão congruentes com tal propósito e método - são ambas necessárias e suficientes para se poder falar de comunidade científica. Tudo o mais vem por acréscimo. Sem elas não podemos falar de ciência enquanto empreendimento colectivo e cumulativo (já que este supõe uma certa continuidade de esforços ao longo de gerações sucessivas de investigadores), nem de progresso científico (já que este supõe uma certa descontinuidade física e - muitas vezes também- cultural entre sucessivas gerações de investigadores).

3. Leonardo da Vinci : cientista sem pares

Sem a condição (ii), não há comunidade científica; quando muito, cientistas isolados. De um ponto de vista histórico, não é sequer necessária muita reflexão para compreender que antes do número de cientistas isolados ter atingido uma determinada "massa crítica", não poderiam existir condições para a emergência da comunidade científica e, por conseguinte, para o aparecimento do tipo de cientista (e de ramificações tecnológicas) que correspondem ao exercício da investigação científica em fases ulteriores. Nem os génios escapam a esta "lei" sociológica.
O exemplo de Leonardo da Vinci vem a talhe de foice. Além do artista-arquitecto-engenheiro-inventor prodigioso que conhecemos, Leonardo foi também um cientista multifacetado. Como cientista, porém, nunca foi membro da comunidade científica do seu tempo - não tanto por escolha própria, mas porque uma tal comunidade não existia na sua época. As suas condições de existência começavam apenas a despontar pela multiplicação de indivíduos animados pelo mesmo tipo de curiosidades científicas que animava alguns dos aspectos da actividade multiforme de Leonardo. Isso ajuda a compreender muitas das suas aparentes excentricidades como cientista ou proto-cientista: a "escrita em espelho" dos seus famosos cadernos de apontamentos, a sua bulimia criativa, etc. Arte e ciência, invenção e experimentação, imaginação poética e imaginação científica formavam uma única trama no pensamento e na obra de Leonardo.

Apreciando o mesmo caso, muitos são, porém, aqueles ou aquelas que aí discernem, principalmente ou exclusivamente, a marca de um génio volúvel, que raramente ou nunca acabava o que começava, ou mesmo traços de personalidade maníaco-depressiva. Digamos, para abreviar, que parece haver neste tipo de interpretações psicologia quanto baste, mas muito pouca sociologia e nenhuma antropologia cultural.

Do mesmo modo, sem a condição (i), sem o apego a um propósito e método comuns, não há também comunidade científica. Nada, aliás, é mais extraordinário acerca dessa comunidade do que o seu apego ao "método da veracidade a posteriori". É esse apego que confere espessura sociológica aos seus traços peculiares. Pois nunca é demais sublinhar o facto, frequentemente negligenciado, de se tratar de uma comunidade que transcende (em maior ou menor grau) as linhas habituais de demarcação que servem para individualizar "prima facie" outras comunidades - a etnia, o idioma, a nacionalidade, o sexo, o território, a classe, a religião, as preferências políticas.

4. O Colégio Invisível

A fundação (1660) e desenvolvimento rápido da Royal Society, uma das matrizes da comunidade científica moderna, ilustra bem os aspectos referidos nas duas secções anteriores. O facto de ter nascido em Londres e de ter um nome inglês não nos deve induzir em erro. A Royal Society (R.S) foi, desde o início, concebida e organizada para ser um fórum INTERNACIONAL de cientistas. O seu grande impulsionador, Henry Oldenburg, não era, aliás, inglês, mas alemão e poliglota. Em 1661, começara por participar numa comissão da R.S encarregue de "considerar questões adequadas para serem investigadas nas partes mais remotas do mundo". Mas os seus talentos de organizador e de poliglota em breve extravasariam esse quadro quando foi nomeado secretário da R.S. A ele se deve a transformação da R.S num verdadeiro "colégio invisível", através da teia de sócios-correspondentes que urdira pela Europa.

Nesse tempo, a carta, manuscrita ou impressa, já era uma forma de comunicação corrente entre cientistas. Era o veículo ideal para comunicar um pequeno conjunto de factos, para descrever uma série curta de observações, para formular uma hipótese ou relatar uma experiência planeada. O seu próprio formato incitava à brevidade e à concisão, criando o estilo despojado e "sêco" que se haveria de tornar, mais tarde, apanágio dos "papers" ou "articles" científicos, seus descendentes directos, sobretudo na Física.

Apenas oito anos volvidos, Oldenburg definia assim, perante a R.S, a sua missão como secretário: assegurar a realização das tarefas experimentais recomendadas, escrever todas as cartas para o estrangeiro e trocar correspondência regular com mais de trinta cientistas ESTRANGEIROS, nas principais línguas europeias. As cartas forneciam assuntos para as reuniões da R.S em Londres. Mas faziam muito mais do que isso, forneciam a matéria-prima que alimentava a grande invenção de Oldenburg: as "Philosophical Transactions", o primeiro periódico científico do mundo.

Para ser ouvido na R.S em Londres, já não era necessário assistir a uma reunião. Para se manterem em contacto e ao corrente dos trabalhos uns dos outros, os cientistas europeus já não precisavam de mandar imprimir centenas de cópias das suas cartas ou dispender somas avultadas na impressão de um livro. Bastava-lhes escrever para as "Transactions". Mais, para escrever já não era preciso sequer saber Latim. O diligente Oldenburg encarregava-se de promover (ou fazer ele próprio) a tradução ou a síntese em Inglês e Francês, se a carta viesse escrita noutro idioma vernáculo. Assim, cada número mensal das "Transactions", com as suas 12 páginas impressas e uma tiragem de 1200 exemplares, fazia juz ao seu subtítulo: "Giving some accompt of the present undertakings, studies, and labours, of the ingenious in many considerable parts of the world".

5. À revelia da universidade

Resta-nos esclarecer um ponto importante para o nosso argumento. Quem eram estes investigadores cujos labores o escrupuloso Oldenburg fazia questão em dar a conhecer, com o propósito - como declarou na apresentação do número 1 das "Philosophical Transactions" - "de que sendo tais criações clara e genuinamente comunicadas, possam ser mais alimentados os desejos de conhecimento sólido e útil, apreciados os esforços e os empreendimentos engenhosos e convidados e encorajados a investigar, experimentar e descobrir novas coisas, comunicar o seu saber uns aos outros e contribuir com o que puderem para o grande objectivo de melhorar o conhecimento natural e aperfeiçoar todas as artes filosóficas e todas as ciências"?

Alguns, poucos, eram universitários: Robert Boyle, John Wilkins e o que viria, em tempo, a ser o mais famoso de todos, Isaac Newton. Outros eram senhores de uma imensa fortuna que os dispensava de prestar vassalagem aos poderes constituídos, deixando-os livres para a suas investigações, como o não menos famoso barão Gottfried Willhem von Leibniz. Ainda outros, como Marcelo Malphighi, o fundador da anatomia microscópica, e John Ray, que propôs a primeira definição operacional de "espécie" e descreveu sistematicamente todas as plantas ao tempo conhecidas na Europa, investiam tudo o que tinham nas suas investigações. Mas a maioria eram homens comuns, de variados ofícios, que nunca haviam passado pelos claustros e clubes da universidade (a nossa "universidade-bis", entenda-se, não aquela cuja razão de ser nos ocupará no próximo artigo). A lista de sócios-correspondentes da R.S incluía John Flamsteed que escrevia do Derbyshire sobre Astronomia; John Beale que escrevia do Oeste de Inglaterra sobre Agronomia; Martin Lister que escrevia de York sobre Biologia e assim por diante.

As fronteiras entre o profissional e o amador, o nobre e o plebeu, o pobre e rico, o clérigo e o leigo, o urbano e o rústico, o nacional e o estrangeiro, desapareciam ou esbatiam-se perante um novo e mais poderoso elo de cumplicidade: o gosto por descobrir novas coisas e contribuir para o objectivo de melhorar o conhecimento do mundo. Robert Boyle, um dos fundadores da R.S, baptizara essa associação informal de entusiastas da ciência, onde quer que se encontrassem, como "Colégio Invisível". Era, então, uma ideia radicalmente nova e difícil de entender. Hoje, que dispomos da Internet, pode ser compreendida por uma criança.

José Catarino Soares
Escola Superior de Educação de Setúbal


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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