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De Mãos Dadas para a Mudança

"Não se nasce vítima,
mas acaba-se sendo-o"
Simone de Beauvoir

Entre 22 e 24 de Janeiro passado decorreu em Lisboa a Conferência "As Mulheres Timorenses e o Direito Internacional", organizada pela Plataforma Internacional de Juristas por Timor-Leste.
O conjunto das intervenções proporcionou aos participantes vasta gama de informações, com especial destaque para os testemunhos de mulheres vindas expressamente daquele território e, de outras que de lá fugiram há mais ou menos tempo. Trata-se de um marco histórico por ser o primeiro encontro de Mulheres timorenses após a ocupação.
O sofrimento, as humilhações, os maus tratos, de que têm sido vítimas desde há 23 anos, não só por parte dos militares e dos civis ocupantes, mas também, em vários casos, o ostracismo das comunidades quando existem situações de violações, de nascimento de filhos de indonésios … são mais dolorosos, mas igualmente mais reais, quando nos são relatados de viva voz.
Acresce, que deste modo foi-nos possível apreciar melhor o heroísmo e a bravura de muitas destas mulheres que no território, ou na diáspora, não desistem de lutar por o que consideram (e muitas de nós com elas) um direito inalienável - o de serem um povo e uma comunidade livres.
Confirma-o esta afirmação de uma mulher timorense, feita em 1996: "Nós confrontamo-nos com muitas dificuldades morais e materiais … Nós as mães de Timor-Leste ... sentimos uma grande responsabilidade em criarmos os nossos filhos e filhas como guardiães da identidade timorense, nesta situação imposta pelo governo ocupante.
Ao longo da nossa história, sempre fomos um povo com características diferentes do indonésio … Não há dúvida que nós nunca quisemos e jamais iremos querer ser integrados na Indonésia. É esta a imagem das mulheres timorenses: mulheres que com espírito de coragem, e determinação continuam a resistir com todo o povo timorense até à nossa libertação total".
Nesta Conferência foi divulgada a actual realidade da situação da mulher no interior de Timor-Leste, a qual está registada num estudo recente levado à prática pela investigadora Ivette de Oliveira. Os dados alcançados são concludentes da difícil condição em que as mulheres se encontram, quer na esfera do público quer na da vida privada. Contudo, ficou a ideia de que transpor e aplicar modelos externos, por melhores que aparentem ser, se não for tida na devida conta a complexa realidade vivida no território, em pouco poderão promover a condição das mulheres timorenses.
Estamos a escrever no dia em que uma nova semente de esperança para Timor foi lançada à terra, referimo-nos à abertura da Secção de Interesses de Portugal na Embaixada da Holanda, em Jacarta, precisamente da responsabilidade de uma mulher, a diplomata Ana Gomes. Sem que a conheçamos, auguramos-lhe os maiores êxitos na sua tarefa que se adivinha espinhosa.
Prosseguindo com o mote das questões de género, queremos trazer à colação um tema de que pouco se fala em Portugal mas, que deve ser motivo de séria reflexão para muitas de nós.
Por cada dia que passa cerca de 6.000 meninas em todo o mundo correm o risco de serem submetidas a mutilações genitais! Ao número total de 135 milhões de jovens e mulheres que já foram sujeitas a esta prática juntam-se, todos os anos, mais 2 milhões. Números que, sem dúvida, nos devem dar que pensar.
Embora se desconheça a origem desta prática, de inegável desumanidade, é sabido que ela é ancestral e não conhece fronteiras nem culturas. Tão-pouco se trata de um preceito consignado nas principais religiões (porque mais difundidas), pese embora o que alguns, por vezes, nos querem fazer acreditar.
A mutilação genital feminina consiste na extirpação total ou parcial dos respectivos órgãos genitais e habitualmente pode revestir uma de três formas: a clitoridectomia - extirpação total ou parcial do clítoris; a excisão - extirpação do clítoris e da totalidade ou de parte dos lábios pequenos e, talvez a forma mais grave, designada por infibulação (que atinge cerca de 15% das mulheres sujeitas à mutilação) que consiste na extirpação total ou parcial do clítoris e dos lábios pequenos e do recorte dos lábios grandes e a subsequente cosedura de modo a que fique uma membrana sobre quase todo o oríficio vaginal, a qual voltará a ser cortada e suturada várias vezes, ao longo da vida.
Os objectivos evocados para tais práticas, bastante arreigadas em algumas sociedades, são a preservação da virgindade e a fidelidade da mulher e sustentam-nas inúmeras crenças sobre a sexualidade feminina e acerca da necessidade de tal rito de iniciação para a idade adulta. A operação é feita sem anestesia, em geral às meninas entre os 4 e os 12 anos, por um médico tradicional, havendo, porém, alguns países em que é praticada por pessoal médico qualificado. As dores, as infecções, as complicações na sequência de partos, tantas vezes a própria morte, fazem parte do cortejo das dolorosas consequências de uma prática da qual pouco se fala, qual segredo mal guardado.
As tentativas para acabar com as mutilações genitais femininas em determinados países esbarram com as críticas de variados sectores dessas sociedades que afirmam tratar-se de um acto imperialista ocidental. Todavia, do que se trata é da tentativa de ampliar a liberdade e a igualdade entre todos os indíviduos, enfim, da construção de uma humanidade única baseada naqueles valores.
Por seu lado, a "Amnistia Internacional reconhece que a Mutilação Genital Feminina é uma prática profundamente arreigada nas tradições de certo número de sociedades. Por isso, é preciso adoptar uma postura prudente e sensível, que a situe no contexto mais amplo da violência e da discriminação da mulher nas diversas culturas, e que respeite a primazia do papel dos agentes de base na sua erradicação".
Por todo o planeta (mundialização à parte) as mulheres são duplamente vulneráveis. São-no na esfera do público devido à sua condição mais frágil e, na esfera do privado, pela subordinação à família. Mas, atenção, em ambos os casos, no relacionamento individual ou colectivo com os membros masculinos do grupo, e dado que não se trata de espaços estanques há uma inter-relação que ajuda a reforçar tais vulnerabilidades.
O médico sudanês Nahid Toubia (grande lutador contra as mutilações) referia, em meados dos anos 80, a urgência de se tomarem medidas para uma ampla difusão de informação acessível com vista à drástica diminuição de tais práticas.
Por outro lado, em Dezembro de 1993, as Nações Unidas adoptaram a "Declaração sobre a Violência contra a Mulher", qual reconhecimento implícito por parte da comunidade internacional da existência de um fenómeno universal de violência de género (pois afecta apenas as mulheres), no qual se incluem as mutilações genitais femininas.
A demora na mudança joga contra a vida de demasiadas jovens!

Elisa Lopes da Costa
CIDAC / Lisboa

 

Para saber mais:

José Tuvilla, "Instrumentos Jurídicos Internacionales - Sobre los derechos de la mujer", in Desarrollo, Derechos Humanos y Conflictos - Observatorio de conflictos, Madrid, CIP, 1998, p 14.

La mutilación genital femenina y los derechos humanos. Infibulación, excisión y otras prácticas cruentas de iniciación, Madrid, Ed. Amnistía Internacional (EDAI), 1998.

Milena Pires and Catherine Scott, "East Timorese Women: The Feminine Face of Resistence", in East Timor Occupation and Resistance, Lisboa, 1998, pp. 141-152.

Stratégies pour l'élimination de la violance à l'égard des femmes dans la société: médias et autres moyens - 3e Conférence ministérielle européenne sur l'égalité entre les femmes et les hommes (Rome, 21-22 octobre 1993), Strasbourg, Conseil de l'Europe, 1993.

Timor Link, London, nr. 36, july 1996.


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa
Elisa Lopes da Costa
CIDAC, Lisboa

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