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Ano novo, vida nova

"Pela minha parte, foi com Dona Letícia (a professora) que aprendi a odiar."
Aquilino Ribeiro

A Letinha andava na quarta classe da manhã, uma quarta onde predominava o método misto: metade pelo livro, metade pela palmatória. O azar da Letinha era não atinar com as reduções. A professora bem gritava, ameaçava, cumpria e... nada. A Letinha, ora levava porque a vírgula tinha ficado fora do lugar, ora porque para chegar ao miriare era ao contrário, i. é., da direita para a esquerda, como era bom de ver. E a Letinha ficou para trás nas reduções.
O fim do ano aproximava-se e com ele o exame de admissão. A mãe era de poucas posses. Os cem mil reis que todos os meses entregava à professora das explicações (que era a mesma que aturava a falta de inteligência da Letinha todas as manhãs) pagavam a preparação para o exame à escola técnica, não obrigavam a aulas suplementares que desvendassem as trevas e os mistérios das reduções.
Então, a mãe da Letinha foi falar à professora da quarta classe da tarde. Era uma professora agregada e muito meiguinha com as crianças. Pediu-lhe que deixasse a filha, que era uma criança muito sossegada e respeitadora, ficar num cantinho da sala enquanto a senhora ensinava a quarta. Que não se havia de arrepender...
A professora da tarde não se arrependeu. Pôs a Letinha a ajudar os meninos da segunda a melhorar a leitura. Mas a Letinha era um ouvido nos colegas e outro no que a professora dizia aos mais crescidos, quando esta abordava a matemática por outros métodos. E a Letinha lá acabou por encontrar um modo fácil de passar de metros para decímetros, de milímetros quadrados para quilómetros quadrados, de fazer reduções e até... aumentações.
A Rosinha, por sua vez, era uma aluna aplicada. Sabia a matéria toda na ponta da unha e era a encarregada de aplicar os castigos: um bolo por cada falta, três por cada erro e assim por diante... A professora exemplificava o modo e a intensidade com que a Rosinha deveria aquecer as mãos às companheiras. Por incrível que nos pareça, naquele tempo era assim.
Em meados de Maio, a professora pegou no papel almaço e dobrou uma margem a três quartos. Era uma prova importante, decisiva. A Letinha saiu-se bem. Fez as reduções todas sem falhar uma vírgula. Foi contemplada com um Muito Bom e um comentário da professora da manhã: "Estás a ver como a régua te fez bem?"
Volvidos alguns anos e uma inútil passagem pela Escola do Magistério Primário (como acontecia antigamente), a Letinha ficou professora. E, também como acontecia antigamente, na primeira colocação como agregada, entregaram-lhe a turma dos repetentes que (antigamente) era costume haver em algumas escolas.
A jovem professora pediu conselhos, mendigou solidariedades. Tudo em vão. A Letinha que se desenrascasse, porque os colegas andavam demasiado preocupados consigo próprios, com o dar o programa e atingir a percentagem de aprovações que lhes segurasse o emprego na função pública. Era assim, antigamente.
Até que, um dia, um colega mais sensível à dramática situação da Letinha lhe entregou uma régua, ao mesmo tempo que, sábia e solenemente, sentenciava: "Ó colega, tome lá. Eu vou para a reforma, a mim já não me faz falta e a si ainda há-de fazer jeito."
Subitamente, a Letinha viu-se assaltada pelos fantasmas de antigamente. Via a Rosinha com os olhos encharcados de lágrimas de implorar perdão. Num impulso, atirou com a régua para o fundo da gaveta, a fazer companhia aos cadernos de duas linhas, que eram uns cadernos usados antigamente para escrever letras em carreirinhas: uma folha de carreirinhas com a vogal a, outra com us todos ligadinhos uns aos outros e por aí adiante ...
Mas a turma dos repetentes continuava apostada em fazer da vida da Letinha um inferno. No fim de uma manhã em que já tinham ficado sem recreio (havia dias assim, antigamente), os putos levaram a Letinha ao termo da paciência. Um estranho sentimento se apoderou da jovem mestra. Totalmente descontrolada, puxou da gaveta a miraculosa herança. O estrondo do vigoroso atirar da régua para cima da secretária provocou um pesado silêncio em toda a sala.
Foi este silêncio que ampliou o descontrolo de alma e os nós na garganta. Foi este silêncio que precipitou um choro solto que atravessou corpos e paredes.
Era assim, antigamente.
Os meus votos de um verdadeiro novo ano para todos,

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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