Página  >  Edições  >  N.º 75  >  Alves Redol

Alves Redol

Alves Redol

e a releitura de O MURO BRANCO

Integrado na edição das "Obras Completas", relemos agora O Muro Branco, publicado em 1966 e, sem dúvida, um excelente romance de Alves Redol em que pôde prosseguir nesse caminho de reabilitação estética da sua obra literária, sobretudo, a partir de O Cavalo Espantado e Barranco de Cegos. De facto, reler este romance passados trinta anos sobre a sua primeira edição é de algum modo retomar o convívio com um dos autores mais prestigiados da corrente neo-realista em Portugal, porque nos anos 60 e mesmo nos anos seguintes antes do 25 de Abril, a literatura portuguesa procurava, na primeira linha das suas intenções, revitalizar o romance como expressão literária e forma de intervenção social e cultural.
Por isso, essa revalorização do neo-realismo se desencadeou dentro de outras premissas estéticas e ideológicas, bem diferentes do esquematismo narrativo, estrutural e literário das primeiras obras publicadas na década de 40. Mas devemos salientar que essa tentativa levada a cabo por alguns dos nossos melhores prosadores através de romances que ficaram como "pontos altos"importantes do neo-realismo português (por exemplo, Bastardos do Sol de Urbano Tavares Rodrigues, Barranco de Cego de Redol ou Finisterra de Carlos de Oliveira), entroncava assim nos parâmetros mais vanguardistas do romance contemporâneo e dentro de perspectivas estéticas que o chamado "novo romance", em especial em França, obrigou a rever dentro de diferentes coordenadas literárias, colocando em destaque que o romance (ou a prosa de ficção) não podia deixar de revelar a influência do cinema nos seus aspectos fundamentais de focagem, ângulos de visão, montagem e estrutura narrativa, mesmo uma pessoalíssima intenção de "escrever" melhor, se acaso isso se deveria exigir a quem muito se empenhava na literatura ou por ela pretendia denunciar situações e conflitos humanos numa sociedade fechada como era a nossa em tempos salazaristas.
Romance de plena maturidade literária, pois, O Muro Branco ainda se lê e relê com o mesmo entusiasmo de há trinta anos, não só pelo sentido de "modernidade" expresso no seu tempo narrativo, mas sobretudo pela forma literária, sobreposta e encadeada nos planos diferentes da acção narrativa em que o romance se estrutura. A sua personagem central, Zé Miguel ou Miguel Rico, como passa a ser conhecido, fala e narra a sua própria história da vida de um aventureiro que, tendo vivido uma infância amargurada e após ter sido eguariço, carregador, contrabandista, candongueiro, chega a ser proprietário rural, isto é, um latifundiário que, em dados aspectos, muito se identifica com o celebrado Diogo Relvas de Barranco de Cegos. Assim, toda a história de Miguel Rico é contada num ritmo alternado, de clara visão cinematográfica, visualizada num processo romanesco bem conseguido na interligação dos seus elementos estruturais, em que o passado se confunde claramente com o presente.
Mas O Muro Branco é, acima de tudo, o romance de um "homem só", cuja vida foi uma grande aventura na senda do dinheiro e do poder pessoal, na conquista palmo a palmo, e por todos os meios possíveis (claro, ontem
e hoje sempre as histórias se repetem), fossem eles de contrabando forçado, compadrio ou escuras manigâncias. E é o romance de um homem isolado, porque de forma consciente ele caminha para a sua destruição e destruição dos mitos que a própria vida o obriga a ter ou criar. Porém, o desespero dramático de Miguel Rico reflecte, por outro lado, uma época de grandes egoísmos, situações quase desnecessárias e ambições desmedidas, ergue-se ainda (e daí a sua flagrante actualidade) como símbolo decadente de uma sociedade ou de certas pessoas que, tal como Miguel Rico, se sentem bem realizadas apenas no convívio com fidalgos, industriais, doutores, lavradores, banqueiros e outra gente que, mesmo nos nossos dias, por aí pulula e só deseja ver a fotografia nos jornais. No bem e no mal dos seus actos, na forma "digna" de enriquecerem depressa e serem, paradigmaticamente, a imagem próxima de Miguel Rico que Alves Redol, na pujança da sua escrita, desejou e conseguiu retratar.
Reler, pois, este romance do autor de Gaibéus é, com certeza, retomar o diálogo com um dos escritores portugueses que mais se esforçaram por "actualizar" ou "revigorar" o seu próprio discurso literário. Ou com afirma Maria Lúcia Lepecki, no prefácio que acompanha esta nova edição de O Muro Branco, poder repetir-se que "no meio dessas semelhanças e desses ecos e dessas profecias de alheias vozes", se denota neste excelente romance de Alves Redol "uma postura básica de linguagem, um modo específico e inconfundível de jogar com as palavras", o que garante aos leitores ser um romance que pertence ainda a um tempo renovador das coordenadas da nossa literatura de ficção de melhor qualidade.
Por isso, reler Alves Redol é o acto que se impõe para quem deseja confirmar a visão de um mundo passado e esse contraponto necessário, no plano da mais profunda expressão humanizada, para os dias de hoje. Aceite o leitor este desafio e verá como se mantém tão perto de nós a história que O Muro Branco retrata e narra sem nenhuma transigência literária.

Serafim Ferreira
Crítico literário

Alves Redol
O MURO BRANCO, 4ª. edição
Prefácio de Maria Lúcia Lepecki
Ed. Caminho / Lisboa.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo