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António Augusto Menano
entre a infância e a memória

QUANDO em 1963 António Augusto Menano publicou Tempo Vivo, que foi por mim prefaciado com uma breve nota em redor da poesia surgida nesses primeiros anos de 60, o prestigiado crítico que foi João Gaspar Simões, e um dos nomes mais ilustres nascidos na Figueira da Foz, pôde saudar o poeta em termos muito entusiásticos para quem publicava então um segundo livro de poemas e não deixou também de destacar o sentido desse prefácio, associando-nos em evidente forma de confraternização, amizade e louvação da própria Poesia.
Ora, passados trinta e cinco anos, reincido ao prefaciar com sincero prazer este novo livro de António Augusto Menano e assim começo por lembrar que, na sua própria bagagem de poeta, com acentuados intervalos de silêncio entre o livro de estreia Tempo de Voar (1961) e os poemas deste Arco da Memória, tem andado por várias paragens no desejo de descobrir, na sua Figueira da Foz ou nas peregrinações por Macau e outras terras do Oriente, aqui ou em qualquer parte, os mesmos afectos ou essa sentida memória das coisas em que se tem consolidado uma "poética", inicialmente de clara intervenção e combate, mas que nos livros mais recentes se ergue como presença comovida de emoções e sentimentos.
Ou por vezes na evocação de quem vive mais perto de si, na forma de captar o sentido menos conhecido dos lugares e pessoas, como acontecera em Caleidoscópio (1996) ou nos seus belíssimos Poemas do Oriente (1991), que se evidenciam por uma nítida e profunda expressividade e na lição exemplar de Camilo Pessanha, que é a sombra tutelar que percorre todo o livro. Mas não deixa de ser importante salientar que, no acto de transfigurar as renovadas experiências do seu trajecto, a poesia de António Augusto Menano atinge uma intensidade poética que, não sendo apenas semântica ou imagística, se revela afinal como ponto de confluência entre um alargado acto de ver, olhar e sentir, reflectir e comover:

Estás aqui a sentir o mundo
no centro da terra onde as estrelas dormem.

De facto, não se trata de um poeta bissexto, porque sempre escreveu sem publicar, e antes de um poeta para quem as contas da vida, nos caminhos de outros ofícios e ocupações, não permitiram pudesse ocupar posição mais destacada na nossa literatura. Mas a estada em Macau frutificou nos três livros publicados entre 1991 e 1996, isto é, entre os depurados Poemas do Oriente, seguido pela surpreendente narrativa Inominável Segredo, que foi um pretexto para evidenciar, numa prosa vibrátil e empolgante, o fascínio que a chegada ao Oriente sempre provoca no espírito e sensibilidade de quem aí vive, conhece as suas gentes, hábitos e formas de viver e profundamente se deixa cativar pela maneira de ser das pessoas que se cruzam por esses lugares. Por fim, a narrativa feita de "histórias quase íntimas" que é Qual o Começo de Tudo Isto?, em que se revela uma certa nostalgia dos anos 60 ou a reincidência da mesma clara utopia que percorre a sua obra literária como forma de incursão pelos arcos e incidências da memória. E assim uma e outra vez António Menano reinventa o tempo passado, evoca as sombras, pessoas e lugares que não foram esquecidos e se erguem em majestade pelo correr do próprio tempo. Mas, por entre a vaga de leituras, filmes ou canções de que se fala nessa narrativa, o Poeta de Tempo Vivo não pôde deixar de fazer referências à sua descoberta cultural e política nesses anos de 60, porque através das variadas formas de utopia soube depurar ou suavizar, na poesia e na prosa, algumas outras utopias e navegações que pertencem a essa "poética generalizada" na lembrança de Bachelard.
Mas, pelos vários paraísos redescobertos e nada artificiais em si mesmos, António Augusto Menano tem confirmado ser esse o caminho para se redimir de um sentido desassossego, interpelar o mundo ou melhor se fazer entender, no modo de ser visível o que no invisível se vê, como declarava Pessoa. Ou ainda em memória do Poeta de Mensagem alcançar esse propósito de ser bem legítimo compreender, talvez com alguma ironia, a desordem posta na ordem e avançar por idênticos rios e lugares de sonho e de alegria, como claramente se repete em muitos poemas deste seu livro Arco da Memória, que engloba poemas escritos em 1984 e 1985, no qual volta a estabelecer as diferentes pontes lançadas no andar dos anos e explicar como essa viagem sentimental se desdobra assim por entre lembranças e na evocação de quem andou no mesmo caminho, deixou nele inscritos os seus recados e foi à vida.
De facto, é pelos fios da memória que, com extrema lucidez, António Augusto Menano procede a esse registo poético em que tudo perpassa pelas diferentes partes de um livro que parece ser feito de muitos livros, sim, e onde as imagens se sobrepõem pela memória como se um indefinido arco poético se pudesse construir pelo que ficou guardado e agora se exprime em imagens de clara fidelidade e com a amarga consciência das pedras que ficaram espalhadas pelos caminhos da vida.
E assim esse sentido de redescoberta através da memória se impõe na razão de descobrir em todas as paragens os sinais que permanecem como andarilho de outras peregrinações, proclama ainda os mesmos afectos ou uma diferente memória das coisas em que se determina essa sua pessoal poética que tem afirmado com extrema expressividade e rigor e este livro se afirma, pois, como corolário de uma experiência tão enriquecedora no plano humano e literário:

Gestos de infância
corrida entre ervas,
olham, enormes,
abertos,
a nossa pesca diária,
junto ao arco da memória.

Mas na certeza que traz consigo de ser um livro elaborado com maior grau de exigência poética, Arco da Memória revela uma admirável contenção expressiva no modo como capta e atinge a serenidade dos pequenos gestos e sentimentos, não por ser uma espécie de descida aos limbos de infância e de adolescência, mas na forma e no sentido de saber enaltecer todos os rios e lugares que desaguam nos ventos da memória e da utopia, mesmo quando os anos parecem não querer consentir outros sonhos. Ou talvez seja, na sua afirmação mais pessoal, esse acto muito próprio de passar o testemunho na comovida e singela dedicatória aos seus filhos e ao primeiro neto que há pouco tempo chegara pelas renovadas águas de outras paragens e navegações:

Guardamos sempre um ramo seco
uma árvore alta na memória
por vezes desaguamos sem querer
nesta avenida.

Serafim Ferreira.
Crítico literário

António Augusto Menano
ARCO DA MEMÓRIA, Poemas
Ed. Câmara Municipal da Figueira da Foz, 1998.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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