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Manuel Alegre ou memorial da guerra em África

Relendo Jornada de África, um romance em que Manuel Alegre, de outro modo bem diferente dos seus poemas, estabelece uma espécie de 'memorial' da guerra em África, temos a convicção de que tudo se não passou ainda há muito tempo, quando em 1961 Salazar ordenou de forma peremptória, dedo espetado e de cabeça perdida: 'Para Angola já e em força'. E Manuel Alegre relembra assim esse cenário de guerra: 'Coxos, manetas, paraplégicos. O resto ficou nas picadas, Angola é nossa, venham ver, há bocados de carne por aí, são pedaços de Portugal florindo, algures no mato, sangue e merda, duarte de almeida é o nosso nome, Para Angola e em força, braços, pernas, mãos' (p.169).

Foi o começo da queda do império lusitano no sonho sebastianista de se poderem vencer as batalhas que temos andado a perder (sempre) desde a de Alfarrobeira. Não havia salvação possível neste país, diz-se, de gente videirinha, oportunista, rasteira ('a terra é pequena e a gente dela não é grande', como um dia declarara Garrett sem nenhuma espécie de solenidade), sempre absorvida nos mais pequeninos interesses. Isso sabe-se, claro, faz parte da História, da nossa própria História, mesmo que surja acompanhado de muitos outros heroísmos ou nebulosas expectativas de certos'desejados' ou salvadores indesejáveis. Mas não é por aí que o tempo se cumpre e a pátria se engrandece - dizem os Poetas. Ontem e hoje, é certo.
Claro, não é através desta 'vaga de fundo' que o romance de Manuel Alegre se deve ou pode entender: antes de mais, no artifício literário de querer reescrever a História como cronista deste reino, pelas páginas e memória de Jerónimo de Mendonça ou ainda no sonho de outros Alcácer-Quibir, o que faz é recuperar a memória límpida e transparente de um tempo de subversão, lutas e emboscadas, independência ou morte, em guerra que foi sem quartel, pelas picadas e capins de Angola, Guiné e Moçambique, na obstinada miragem de poder derrotar e esmagar terras e gentes, estas sim, teimosas e destemidas, no tudo por tudo, nos actos e legítimos propósitos da sua independência. Não como 'condenados da terra', de quem Frantz Fanon evocaria e louvaria as razões de luta, em livro que foi uma nova bíblia no continente africano dos anos 60, antes como povo que sabia do direito certo e quase consuetudinário da sua emancipação.
E, pelo caminho das lutas e guerras cruzadas, na memória e certeza de tantas mutilações, estropiamentos e mortes, saber sempre apoiar-se na palavra e no canto dos seus melhores poetas: Aimé Césaire e Senghor, Agostinho Neto e Viriato da Cruz, José Craveirinha e António Cardoso. E ser a poesia a arma e o canto para arvorar como inevitável bandeira dessa luta, na linhagem de outras revoluções e combates, na Argélia ou no Vietname, em Cuba ou no Brasil. Não que a poesia fosse (ou devesse ser) apenas esse acto simbólico de participação, mas porque os poetas sempre acreditaram que, na força e conquista da sua expressão, também a vida se podia mudar no sentido mais desejado: 'Para agir sobre as coisas é preciso pecar. Só pecando, ó Rimbaud, se muda a vida, E em se mudando a vida, já Camões o sabia, se mudam os gostos dela' (p.100).
Sem nenhuma outra inocência que não fosse a coragem dos gestos necessários, na hora certa, e não haver por aí rasto de qualquer excessivo visionarismo. Lição das coisas num mundo convulsionado como o foi nos anos 60, nessa atitude de a poesia se erguer sempre como arma na resistência e nos movimentos de emancipação e impor-se sem falsas tutelas no modo imediato de a palavra se revelar como veículo adequado à reafirmação de outros valores ideológicos e humanos.
Dizia Alexandre O'Neill, na consabida ironia da sua condição de poeta: 'Portugal: questão que tenho comigo mesmo./ Meu remorso de todos nós...' E eis um dos muitos poetas que Manuel Alegre evoca pelas páginas deste romance Jornada de África, não como forma de renovada ironia e antes no sentido de recolocar o tempo romanesco na hora distante e próxima de um certo 'juízo final'. Contra quem? A favor de quem? Naturalmente, contra o fascismo e todas as prepotências da ditadura salazarista: 'A medo se falava, a medo se regressava de noite a casa, a medo se acordava, a medo se dormia, a medo o amor, a medo tudo' (p.71). Naturalmente, a favor das gentes e terras colonizadas, no canto e sem armas, nas palavras erguidas em poemas de quem soube dar voz aos que a não tinham (ou a tinham de armas nas mãos) pelos confins de África. E assim isso mesmo poder dizer ou lembrar: 'Talvez um dia venhamos a perceber que foi por aí que nos perdemos. Vi gente a arder regada pelo napalm, e tochas humanas ateadas por estas mãos. É por isso que é preciso dar outro sentido a esta coisa' (p.105).
Não como remorso ou penitência agora escusada e, sim, na atitude lúcida de querer rever e compreender esse destino colectivo na impotência da derrota e da retirada, no poisar das armas e no abandono, sem nenhuma grandeza nem glória. Porém, o que se impõe na escrita deste romance de Manuel Alegre é ainda esse insistente e deliberado propósito de exorcizar os fantasmas que pairaram por Luanda ou Nambuangongo e em tempo de guerra estiveram diante dos seus olhos, com o 'inimigo' ali bem perto, armadilhado na sabedoria de ter razão por outros lhe ensinarem os processos e tácticas de desmoralizar e vencer quem combatia do outro lado, na lembrança dos livros de Mao, Giap ou Guevara, como nesses manuais aprendera, por exemplo, Domingos Da Luta e foram mais mortíferos do que as armas desse combate tão desigual em luta de vida e de morte.
Mas o próprio itinerário narrativo de Jornada de África faz-se no entrelaçamento literário de algumas outras pistas: reescreve o tempo de guerra em Angola na distância (e presença) de serem as personagens revividas na memória ainda presente de Alcácer-Quibir e ser Sebastião o narrador desta 'jornada' em mito que, na sua aparência, se desdobra em planos não de pura invenção estética, mas nessa certeza de haver passos e lugares que se repetem, de haver razões para descobrir muitos outros 'fumos' na história interligada de tantas histórias, visões e imaginários que se misturam no acto de contar ou narrar o que ontem e hoje se revela assim de alguma intencional convergência: 'Que fio indizível parece ligar as coisas? Não seria mania sua a de misturar os tempos e a História?' (p.74) - pergunta o Poeta ao narrador dos factos e feitos desta crónica dos tempos actuais, vinte e quatro anos passados sobre o 25 de Abril. Mas na consciência clara e perceptível de a vida sempre se escrever por si mesma: 'Ninguém é ao mesmo tempo personagem e narrador, o que vive e o que conta, o que é e o que escreve, o que e o que. Podia puxar da caneta, registar, tomar notas' (p.73).
E, apesar de ser um romance-testemunho e de denúncia da guerra colonial, este livro de Manuel Alegre valoriza-se sobretudo por se afirmar como exercício de escrita e de memória, nessa forma de canto epopeico que apela ao secreto sentido de ser o poeta a voz que, em favor dos outros, na sua redobrada intenção narrativa, deseja ser arauto de outras verdades e quer ter razão antes de tempo, evocando e denunciando esse tempo de violências e raivas, mortos, muitos mortos alinhados diante dos olhos e mandados às escondidas dentro dos porões de outras naus para a notícia se não espalhar
e o pânico ser apenas entendido pelos que sentiam no corpo as duras e penosas sequelas da guerra.
Mas ainda na certeza de que 'ao cheiro da canela / o reino se despovoa', a salto ou pela deserção, na luta subversiva que se intensifica ou no desânimo de ser esse um tempo de 'hora absurda', sem grandeza nem razão, de que Maldonado fala antes da sua morte depois acontecida na picada das Sete Curvas: 'O meu antifascismo é total e absoluto, não admito o culto da morte seja sob que forma for. Nem que seja a da morte pela vida. Eu não sou noivo de nenhuma morte, quero a vida, já, corpos, mamas, coxas, muitas conas o mais possível. É esse o meu antifascismo, viver até mais não, aprendi com o Panzo, olhe que esse ensina mais do que todos os manuais da política' (pgs.125-6).
E, neste sentido de com as palavras 'se criar o irremediável', na morte próxima e no medo de não existir outra salvação ou escapadela, sem epopeia nem falsos heroísmos, saber em memória relembrada de Duarte Pacheco Pereira que sempre 'a experiência é madre das cousas e por ela conhecemos radicalmente a verdade'. Por isso, o que Manuel Alegre mais ressalta em todo o romance é a densidade poética da escrita, na coerência formal que ainda se prende claramente com a dimensão discursiva da sua poesia dos anos 60. Para lá das vozes e referências literárias constantes ao longo da própria narrativa (repetimos, mais 'crónica' ou 'relato' literário do que um romance, não só pela sua estrutura, mas também pelo clima declamatório de muitas das suas páginas, declamatório e intertextual no seu melhor sentido) - e, entre outros nomes, Camões, Pessoa, Pessanha, Bandeira, Torga, Rilke, Herberto ou Pound -, ressalta neste livro um ritmo narrativo, poético e vibrátil, retumbante e agressivo, exacto e minucioso nas descrições que faz de Jornada de África um romance bem elaborado e dos mais densamente conseguidos nesse implacável retrato ou memória descritiva do que foi a guerra colonial. E é desta forma superior que narra e escreve:
'Cavalos destemperados, cavalos loucos, cavalos à solta pela picada fora, são cavalos e cavalos cegos, jipes e jipões, unimogues e GMCês, são grandes cavalos destemperados, aflitos, aflitos, pela picada fora. Ó música, fanfarras, dias de parada, desfiles, a perna bem esticada, o braço à altura do ombro, a cabeça levantada, hop dois hop dois, esquerdo direito, o rufar dos tambores, bandeiras, bandeiras, hop dois hops dois, esquerdo direito, é tudo um ritmo de tambor dentro dele, ou talvez da marcha militar onda há metais, pendões, cíbalos, oiro, campos de batalha e as belas, velhas, loucas cargas de cavalaria' (pgs.48-9).
Mesmo na pretensa afirmação de Sebastião dizer, a dado passo deste romance, na carta que escreve à sua Bárbara mais cativa pelo amor do que pelo 'nacionalismo' africano que defendia: 'Camões decassilaba--se em mim. Até por carta ele se associa. Ninguém voltará a escrever o português assim'(p.183), o que deseja evidenciar é essa aura camoniana de as palavras poderem 'criar' assim o irremediável e ser a escrita uma forma pessoalíssima de salvação ou de redenção. E no modo de dizer ou falar, na grandiloquência pouco solene do verbo e do seu sentido mais oculto, reclamar ainda como participação de certa ironia ou escárnio consentido: 'Não há aqui epopeia para dizer. Somos lusíadas do avesso, ninguém nos cantará' (p.186). Ou na confirmação desse mesmo colectivo sentido histórico e literário que desta forma se ilumina: 'Tropas do Quinto Império, embarcam na Mensagem não n'Os Lusíadas, a cada tempo o seu cantor e o seu profeta, já foi a hora da grandeza, esta é a hora absurda' (p.179).
Repetimos, pois, que é um livro de uma clareza discursiva que em todos os aspectos põe à prova a verdade dos factos, mesmo na amarga consciência de saber, como na epígrafe de René Char, que 'esta guerra se há-de prolongar para lá dos armistícios platónicos', Jornada de África revela-se, sem dúvida, como um depoimento pessoal de quem, como poeta e prosador, tinha também esta questão para resolver: escrever o livro que faltava, depois de ser o canto e a memória em tempo de guerra essa correia de transmissão de outras emoções, sentimentos e protestos.
E erguer, em páginas carregadas de emotividade, o 'relato' próprio e único de uma aventura que, desde Coimbra até Luanda e Nambuangongo, depois por Argel e Paris de outras lutas, sempre esteve na primeira linha de combate contra o fascismo salazarista e marcelista. Por nós e a favor de toda a gente. Na liberdade sentida e proclamada para lá de falsas profecias ou mesmo na aparente contradição de certas posições políticas depois de Abril de 1974. Mas, como banho lustral que tudo apaga, a poesia e a escrita se redimem ou fazem redimir assim por outras águas esse eloquente sentido de uma poética que coloca Manuel Alegre no primeiro plano da nossa moderna literatura. Enfim, Jornada de África é um livro de e sobre a nossa guerra colonial, não como esperado ajuste de contas, mas em forma de louvação por uma guerra sempre lembrada (nos medos e lamentos de quem a sofreu) e reafirmada pela arte e escrita exemplar do Poeta de Praça da Canção.


Serafim Ferreira

Manuel Alegre
JORNADA DE ÁFRICA
Pub. Dom Quixote / Lisboa.

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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