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Dissonâncias

Quando lerdes este texto, já terá passado o período de discussão pública do normativo que, futuramente, regerá o exercício da (autonomia), gestão e administração das escolas. Posso, pois, escrever já sem o risco de influenciar as opiniões dos professores que, após tantos colóquios, debates, seminários e manifestações, estarão mais que esclarecidos sobre o assunto. Nesta presunção, serei comedido no discurso, até porque não disponho do tempo e erudição de alguns colegas de ofício, nem de um DESE em gestão que me ilumine este deambular reflexivo sobre algumas bagatelas que o ardor dos debates parece ter esquecido.

'Escolas de primeira, escolas de segunda'
Quando se refere a possibilidade da existência de escolas de primeira e escolas de segunda, estaremos, porventura, a pensar na situação de subalternidade em que, desde há longas décadas, sobrevive o ainda ensino primário ? Teremos presente essa indigna subalternidade imposta ao primeiro ciclo virtual de um virtual ensino básico ? Ou padecerá a denúncia de um erro de perspectiva? Quem nunca teve um centavo de financiamento, quem sempre se viu privado de tudo o que outros segmentos do sistema beneficiaram, quem sempre se viu privado de um mínimo de dignidade, o que é que tem a perder agora?
Quem está preocupado com o possível adiamento que manterá (por mais dois anos?) estas escolas de segunda ? Se vinte e três anos não foram suficientes para prepararem a sua autonomia, quando se completar um quarto de século de adiamento já estarão preparadas?
No segundo dos artigos do decreto 43/89 define-se o conceito de autonomia de modo mais abreviado que o que consta da actual proposta de lei: 'Entende-se por autonomia a capacidade de elaboração e realização de um projecto educativo'. E onde estão os projectos educativos? Ausentes em parte incerta, talvez regressem (só no papel?), para cumprir um requisito formal. A ausência de verdadeiros projectos gerou a quebra do sentido de colectividade nas escolas, a perda da capacidade de uma intervenção autónoma e responsável, que alguns casos pontuais de dissonância não contrariam. Porque nos queixamos, então, da perpetuação de estruturas centralizadoras?
A perda do sentido comunitário é alienante e muitas escolas funcionam ainda como meros estabelecimentos de ensino onde coexistem alguns professores algumas horas por dia, sem qualquer momento de trabalho colaborativo. As decisões são unipessoais, a participação nas decisões não existe por não existir um verdadeiro colectivo. Neste contexto, o que é que as escolas de primeira têm que as do primeiro ciclo de segunda não tenham? Por que não entramos todos juntinhos no olimpo autonómico?
As escolas de outros ciclos mitigaram carências com recurso ao seu parco rendimento mínimo. As do primeiro ciclo nem do rendimento mínimo beneficiaram. Remetidas para uma economia de subsistência, iludiram a miséria com receitas de peditórios, numa gestão terceiro-mundista feita por controlo remoto a partir da sede do concelho e por titulares nomeados (o 25 de Abril foi há 24 anos!). Mas nem pegaria no assunto pelo lado dos cifrões. Os antigos e actuais titulares de cargos de gestão e administração socializaram-se numa gestão e administração que pouco ou mesmo nada têm a ver com projectos que concretizam a autonomia consagrada na Lei de Bases do Sistema Educativo. A maioria dos gestores esbanjou recursos em sucessivos planos anuais sem qualquer matriz de projecto e sem contrapartida de desenvolvimento. Irá manter-se esta atitude? A gestão exercida num vazio de projecto (que equivale a uma caricatura da autonomia) irá multiplicar-se a coberto da nova gestão?
Como referia um documento já com dez anos, 'não haverá grande diferença entre o conceito de direcção da escola que actualmente se pratica e o que existia antes do modelo de gestão em vigor (...) em termos de direcção de um projecto pedagógico, uma organização escolar integrada numa comunidade mais vasta alterada por força do movimento de democratização da sociedade portuguesa, não se verificou o 'salto necessário'. Por isso, temo a manutenção de órgãos de gestão unipessoais. O peso de uma tradição de dependência é tão grande que, com a designação de director ou outra qualquer, a maioria dos gestores serão potenciais capatazes-intermediários de poder e, raramente, gestores de um projecto participado por uma comunidade educativa. A gestão dos cifrões continuará a infectar a gestão de projectos? Por quanto tempo mais os gestores profissionais irão degradar o conceito e adiar o exercício pleno da autonomia?

João Barroso bem clama por formação...
A gestão terá de ser exercida numa perspectiva eminentemente pedagógica. Não basta saber de papéis. O exercício da autonomia coloca-nos perante exigências às quais a boa-vontade e a experiência acumulada numa gestão de cariz burocrático não pode dar resposta. As grandes mudanças exigem preparação dos promotores da mudança porque o modo de agir mexe com a mentalidade formada ao longo de gerações.
No caso particular do 1º ciclo, duas décadas de criminosa marginalização contribuíram significativamente para gerar sub-culturas de subordinação que muitos professores, não só consentem, como insistem em promover. Ainda hoje, muitos professores continuam a pedir a órgãos intermédios autorizações que não precisam de pedir e estes continuam a autorizar o que não carece de autorização, um comportamento que 'fortalece a burocracia, acaba por dar segurança ao professor, mesmo que essa segurança signifique dependência e incapacidade de tomar decisões. Tal atitude (...) é bastante generalizada e revela o posicionamento do professor primário face ao poder e à autoridade'.
Começamos a vislumbrar os riscos da nova gestão? Estão mais dentro de nós que no decreto. Ou não será assim? A quem interessará que não se diga que, ao longo dos últimos vinte anos, o primário perdeu, ou foi arredado de todas as oportunidades de afirmação e que muitas das suas escolas são estruturas frágeis, ainda sujeitas a muitas indignidades e discriminações? É preciso recordar, mais uma vez, que o primeiro foi o único dos ciclos do Básico a quem o Decreto 43/89 recusou autonomia, como se todos os professores primários fossem considerados irresponsáveis?

Descentralização, ou desconcentração?
Urge desburocratizar as estruturas de âmbito nacional e regional. A mera desconcentração, ou delegação apenas multiplicará os vícios de que enfermam. A reformulação das práticas não pode operar-se somente numa parcela do sistema: a escola. No espírito do preceituado na Lei de Bases, faz sentido a instituição de um órgão local (de dimensão concelhia?) designado de Conselho Local de Educação. Neste órgão deverão estar representados os órgãos de direcção das diversas escolas e o edil concelhio responsável pelo pelouro da Educação. Mas discordo de estes órgãos deverem agir como fiadores nas operações de contratualização de autonomia. Discordo, igualmente, de quem advoga que a participação dos representantes dos pais e outros não-professores se circunscreva ao âmbito do C.L.E. É ao nível comunitário próximo e imediato que a sua intervenção se deve fazer sentir. É directamente na escola, com os professores, no quadro de verdadeiros projectos que ultrapassem os tradicionais limites dos projectos educativos de escola.
Reflectindo insegurança (ainda que não confessada), erguer-se-ão as vozes que afirmam não estarem os pais, os autarcas e outros agentes educativos preparados para assumir as suas responsabilidades. E estarão preparados os professores?

'Aprende a nadar, companheiro!'
A autonomia pressupõe risco e responsabilidade, sem os quais sobrevive 'uma atitude defensiva mais própria de funcionários do que de profissionais autónomos'. O discurso da autonomia pode desempenhar uma poderosa função ideológica, bem visível nas posições assumidas num debate que foi mais um jogar às escondidas: dá-me cá mais dez por cento de professores na assembleia, toma lá a supressão de uma preposição simples no decreto; venha de lá mais um Conselho Local de Educação, toma lá mais um adiamento.
Quando se discutirá o essencial? Quem se importa com isso, se as escolas com este ou outro normativo, continuarão a leste de qualquer ideia de projecto, que o mesmo é dizer de autonomia?
Àqueles companheiros de profissão que, teimosamente, ainda ousam correr o risco da apostasia, recordarei o que aconteceu com o Titanic... E recomendar-lhes-ei que aprendam a nadar enquanto é tempo.

José Pacheco

 


  
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Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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