Página  >  Edições  >  N.º 64  >  Evocação de Raul de Carvalho

Evocação de Raul de Carvalho

Evocação de Raul de Carvalho

Começarei por dizer com Jorge de Sena que, pelas suas virtudes admiráveis e nos seus defeitos, perpassa na poesia de Raul de Carvalho 'um desespero anárquico constantemente dividido entre um terno sentimento e uma solidão angustiosa'. Mas passados agora treze anos sobre a sua morte, lembro que este Poeta do Alvito mereceu já  a edição de toda a Obra Poética, a par de várias formas de consagração em textos de crítica e abordagem ensaística. E desse modo se tem procurado fazer emergir da sombra a voz poética de um dos nomes mais expressivos da poesia portuguesa deste nosso tempo, que em vida e até depois da morte conheceu a sua via-sacra: longos foram os anos de indiferença ou esquecimento, e ainda hoje não sabemos se isso foi mesmo intencional por parte de uma crítica sempre mais inclinada a proclamar o talento poético de quem o não tem, negligenciando uma 'poética' que, como a do autor de Tudo É Visão, se arvora claramente torrencial e arrebatada, calorosa e serena, no sentido literário de parecer existir, dizem alguns, pouca 'oficina' em muitos dos seus poemas, mas que desde sempre se afirmara como um rio caudaloso que navega por águas que não deixam lixos acumulados nas margens que o percorrem.

Mas, encontrando-se à disposição dos leitores e dos críticos todos os títulos que, tantas vezes por sua conta e em cuidadas 'edições de autor', publicou ao longo de quarenta anos de servidão no ofício de poeta, posso dizer que, na intencionalidade com que elaborou a sua obra, Raul de Carvalho o fez pelos caminhos da verdade e da coerência e sempre tratou as linhas essenciais desse trajecto, como aliás o fazem os grandes poetas: reside aí a bagagem, poética e cultural, que transportou em largos anos do seu constante ofício de viver. Não por isso ser da sua própria condição, mas por nunca conseguir escapar, mesmo por entre o comovedor cortejo de humilhações e desamores, à vocação interior de a si mesmo se entender e fazer do acto da escrita uma permanente forma de salvação. E assim algumas vezes lhe ouvi dizer: 'Se para alguma coisa serve a escrita (a 'escrita poética', dessa falo), é para nos libertar, nos salvar, nos conciliar'.

Num ensaio mais biográfico do que crítico que publiquei em 1995, com o título Raul de Carvalho: entre o silêncio e a solidão, pude declarar que, no que de visível e de iluminado nos aponta, sem nenhuma espécie de engano, toda a sua poesia tomou as palavras como arma na forma de estar ao serviço da (sua) verdade e exprimir em sinceridade esse profundo e magoado grito como grande poeta do nosso tempo. Porém, devo também lembrar que Eduardo Lourenço, no objectivo paralelismo feito com a inesgotável imagem de Álvaro de Campos que percorre boa parte da poesia de Raul de Carvalho, afirmara em tempos que, 'a torrente admirável do seu lirismo encobre um pouco o secreto gesto que nela está  empurrando sem cessar a 'solidão do homem para um ponto que fica algures no universo'. Na sua poesia se unificam e resgatam os bocados a mais que havia na jarra definitivamente partida de Pessoa'.

E desse modo se pode dizer que a presença de Pessoa (mais do que a de Pascoaes, é evidente), sobretudo pela luminosidade solar de Campos e não tanto pelo bucolismo de Caeiro, é talvez a sombra que melhor perdura e permanece nessa ânsia de serenidade bem patente na poesia do Poeta de Realidade Branca, não como sombra tutelar em que se encostou ou pediu abrigo e antes como um sinal de direcção ou aviso da própria navegação em que transitou no correr dos anos:

Olha, Mila, entre os medos que me assaltam e eu cultivo

o principal é que a minha mãe já não goste de mim.

Sabes, nunca li com vagar o Álvaro de Campos

porque aquilo era demasiado meu para ser dele.

Porque as multiplicações dele

são as minhas multiplicações.

Poeta do silêncio e da revolta, cantor desesperado de esperanças ou alegrias que a vida cedo fez soçobrar, a voz singular de Raul de Carvalho claramente se insere numa linha poética maldita ou ousada, mas sempre sincera e apaixonada. O fardo da vida que carregou e povoa os versos que nos deixou, não é mais do que a certeza de que escrever foi (ainda) uma e mesma forma de se sentir vivo, tudo poder suportar e calar, 'estar fora' desta sociedade em que de todo se não quis integrar. E isso nunca escondeu nem lhe perdoaram. Até à sua morte, acontecida em Setembro de 1984.

Ao reunir neste volume cartas e postais recebidos entre 1965 e 1984 (e revelando outros papéis que andavam dispersos ou esquecidos e se revelam de interesse para melhor conhecimento da personalidade do Poeta), pretendo tão-só contribuir para que, através dos seus desabafos ou protestos, melhor se compreenda como Raul de Carvalho suportou até ao fim dos seus dias uma malfadada e triste sina e, por entre lutas, desencantos e desesperos, foi realmente e no mais amplo sentido uma Poesia feita contra tudo e a favor de nós. Sempre. E assim mesmo ainda consente ser possível fazer dela uma certa leitura, passados tantos anos sobre a sua morte, e na diversidade dos muitos livros que nos ficaram desse longuíssimo clamor de silêncio e solidão.

Por isso, estas Cartas & outros papéis se revelam como uma forma natural de expressão e afirmação de um Poeta que, muito avaro nas suas confissões ou desabafos literários, não pediu nunca licença a ninguém para existir e assim soube viver em Lisboa os seus demorados anos de dor e pena, 'sempre com medo da morte', como costumava lamentar-se, que acabou por levá-lo na véspera de completar 64 anos de idade, quando andava pelo Porto e Vila Nova de Cerveira em busca de alívio poético para as suas mágoas junto de alguns poucos amigos que ali viviam.

Porém, nesta hora de sentida evocação, posso dizer-lhe que nesta vila de Alvito, no coração alentejano e a dois passos da Cuba do seu 'louco e bom Fialho', entendo agora melhor, ainda na voz saudosa de Adriano Correia de Oliveira, como

Quem manda na vila

Não lhe dá cuidado.

Malteses, ganhões,

sangue misturado.

Na vila de Alvito

é que eu fui criado.

Texto de apresentação do livro

CARTAS & Outros Papéis,

Centro Cultural de Alvito, 1.Dezembro.1997

Serafim Ferreira


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo