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A educação permanente como fonte para repolitizar o debate sobre a educação e formação de adultos

No Relatório Faure (UNESCO, 1972), o conceito de Educação Permanente (EP) diz respeito a todo o processo educativo, compreendendo todas as suas formas, expressões e momentos, de maneira a garantir a educação global das crianças e jovens e a preparar os adultos para exercerem melhor a sua autonomia e liberdade. A EP é entendida como um projecto educativo que inter-relaciona a dimensão individual e social da educação, veiculando um sistema humanista de valores colectivos. Logo, esta visão da EP contém opções políticas e representa um projecto de cariz ideológico, uma utopia (Edgar Faure, coord.). Deste modo, a perspectiva da EP implica uma nova visão e interpretação, quer para o processo educativo, quer para a própria percepção do destino da humanidade (Paul Lengrand).
Assim, por um lado, no contexto da história dos sistemas nacionais de educação do ocidente, a EP representou a possibilidade de fazer uma profunda reestruturação nos valores subjacentes a estes sistemas. O papel da escola, no âmbito desta perspectiva, muda completamente, na medida em que a educação básica que nela deve ser alcançada é percepcionada como um prelúdio, que se destina quer a dotar os futuros adultos com os melhores meios para se exprimirem uns com os outros, quer a promover a capacidade de obter informação de forma autónoma, quer, ainda, a criar uma sociedade onde os indivíduos saibam comunicar, trabalhar e viver cooperativamente uns com os outros. A EP representa, pois, uma alavanca para alterar o entendimento do conceito moderno de educação.
A este respeito, Rui Canário refere que a perspectiva da EP assenta em três pressupostos sobre o processo educativo, “o da sua continuidade (em termos diacrónicos), o da sua diversidade (integrando deferentes níveis de formalização e instituições de natureza educativa escolar e não escolar) e o da sua globalidade (ao nível da pessoa e ao nível de contextos locais)”.
Nesta lógica reunifica-se o que o sistema escolar de educação espartilhou e, a ser efectivada, uma reestruturação desta natureza implica pelo menos dois tipos de corolários: primeiro, a separação entre a ideia de educação e a ideia de haver uma idade própria para aprender; segundo, a perda total de significado para a noção de sucesso e insucesso escolar. Passar-se-ia, na verdade, de uma concepção institucional e normativa do conceito de educação, para “uma concepção da aprendizagem encarada como coincidente com o ciclo vital e a construção da pessoa, correspondente a um percurso de aprender a ser”. Durante as décadas de 60 e 70, a EP é, sobretudo, entendida, no que se refere à reestruturação dos sistemas escolares e de todo o processo educativo, como um princípio unificador que possibilitaria a reunião num todo coerente dos vários aspectos da educação, ou das várias “educações paralelas” (Inácio Nogueira).
Por outro lado, ao nível da dimensão política da educação, há também um contributo da EP que é de igual modo significativo, por propor um “caminho teórico e de acção” (Canário). Neste âmbito, a visão de construir uma sociedade nova, uma sociedade da aprendizagem, na qual se alude também a um novo tipo de cidade, referida como cidade educativa, merece um destaque especial. Esta visão é na realidade a essência do Relatório Faure e do entendimento dado à EP e assenta em objectivos de transformação social, que ao longo do relatório vão sendo progressivamente explanados, em vinte e um princípios e recomendações que ilustram qual o caminho a seguir para tornar a realidade ‘de hoje e de amanhã’ mais próxima da utopia idealizada. Assim, numa linha de posicionamento que não deixa dúvidas acerca do carácter humanista subjacente a esta visão, defende-se que “está fora de questão, para a educação, ser confinada, como foi no passado, a educar os líderes de amanhã (…) a educação não é mais um privilégio de uma elite” (Faure).
Na perspectiva da EP, a ideia da cidade educativa, que consubstancia a visão da sociedade da aprendizagem, parte do pressuposto de que ao admitirmos que a educação será cada vez mais uma necessidade primordial de cada indivíduo ter-se-á que investir os esforços para o seu alargamento e expansão, sobretudo em duas direcções incontornáveis: no desenvolvimento de outro tipo de escolas, politécnicos e universidades, enriquecidas com outro tipo de modos de trabalho pedagógico, bem como com outro tipo de relação pedagógica, construídos a partir dos modelos existentes; e na criação de outro tipo de instituições na cidade, públicas e privadas, que, promovendo uma extensão educativa, permita incluir nas várias dimensões institucionais da vida na cidade uma função educativa, que saiba aproveitar o potencial educativo existente nas comunidades locais. É neste sentido que a cidade pode ser entendida também como educativa, numa aproximação ao ideal ateniense da paideia, a cidade educativa representa “a escola para o sentimento cívico e de companheirismo” (Faure).
Resta enfatizar que a visão da cidade educativa e da sociedade da aprendizagem é, no Relatório Faure, posta ao serviço de uma missão de transformação social cuja finalidade fundamental é democratizar a educação. Uma educação democrática constitui, nesta perspectiva político-filosófica, a condição base, o epicentro para garantir o “direito humano de ser”. Mas a missão de democratizar a educação implica mudar as bases tradicionais da relação entre sociedade e educação. Todas as esferas sociais, especialmente a política, a económica e a familiar, são assim convocadas a dar o seu efectivo contributo, porque uma sociedade da aprendizagem, para além de democrática, terá de ser solidária, e é nessa medida que se afirma que “a luta contra a ignorância é tão importante quanto a luta contra a fome” (Faure). Por fim, a sociedade da aprendizagem ambicionada não só é democrática e solidária como é pacifista, pelo que no caminho de acção a trilhar haverá que inverter a tendência belicista da humanidade.
O futuro assim pensado significa que a ‘educação de amanhã’, que aqui defendemos e exigimos para hoje, toma forma numa totalidade cooperativa que integra estruturalmente todos os sectores da sociedade, para benefício do bem-estar de todos. Este programa, assumidamente utópico, sem que essa dimensão, a nosso ver, o comprometa como proposta de acção perfeitamente actual, pode ser visto como a inspiração que falta para motivar os actores da nova educação e formação de adultos a reequacionarem o papel atribuído hoje ao sector pela visão, contrária, da aprendizagem ao longo da vida.

Rosanna Barros


  
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Edição:

Edição N.º 192, série II
Primavera 2011

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