Página  >  Edições  >  Edição N.º 187, série II  >  Alimentos milagrosos?!

Alimentos milagrosos?!

Trabalhar na sala de aula as mensagens publicitárias; debater o consumo alimentar e as suas motivações; organizar jogos com objectivos pedagógicos – são ferramentas importantes para usar e abusar, numa época em que a velocidade de informação é de tal ordem que muitas vezes dificulta a reflexão.

A romã tem propriedades anti-oxidantes, o chocolate faz bem ao coração, o café previne o Alzheimer, o vinho tinto facilita a circulação sanguínea, o gengibre dá vigor, o alho evita o colesterol, o mel é antibiótico... E basta uma pesquisa simples na net para aparecerem alimentos concretos com propriedades a que as pessoas se agarram para justificar a sua ingestão especial!
Muitas destas informações circulam nos media quer sobre forma de “notícia” de espaço comprado quer sobre a forma de publicidade a produtos a que alguns chamam de suplementos alimentares.
Por que é que as pessoas valorizam tanto as propriedades de um alimento para que alguém lhes chama a atenção? A cultura da magia e da religião em que nos inserimos, e a cada vez maior falta de espírito crítico em relação ao que nos dizem, favorecem a proliferação dos alimentos-milagre.
Basta pensar um pouco para perceber que os alimentos são a nossa fonte de matéria-prima. É a isso que os nutricionistas chamam de nutrimentos com a função de nutrir, daí que os nutrimentos sejam nutrientes. A linguagem comum fez com que o substantivo e o adjectivo se tornassem sinónimos e neste momento o adjectivo até já se substantivou! Todos dizemos que os alimentos têm nutrientes (usado como substantivo). Alimentar significa “meter dentro” e, quando metemos alimentos dentro de nós, eles vão ser a base para as matérias-primas que renovam as nossas células e permitem a transformação em energia. Algumas dessas matérias-primas são essenciais, ou seja, o nosso corpo não as consegue fabricar a partir de outras nem consegue permitir a vida se elas não estiverem lá – pelo que chamamos nutrientes essenciais. É claro que todo este processo da digestão à nutrição é feito sem o recurso à nossa consciência. Não percebemos nem precisamos de perceber todas as transformações químicas e físicas que fazem com que este verdadeiro milagre aconteça.
Como é que uma maçã ou um ovo se transforma em nós? Ou como é que um pão se transforma em pensamentos ou memórias? Como é que o meu corpo sabe que precisa dos nutrientes x ou y para que as unhas cresçam ou para que a pele que me caiu na praia de facto não me faça falta? Como é que o corpo sabe que vai buscar proteína à sardinha ou ao feijão e que precisa da vitamina C que vai buscar ao morango do meu almoço para conseguir que os hidratos de carbono do arroz de facto se possam transformar em energia?
O milagre existe, não no alimento, mas no corpo de cada um de nós. O alimento sozinho não consegue ter toda a matéria-prima de que o corpo precisa. Daí se ter inventado um instrumento que ajuda a guiar-nos e, de forma fácil, a sabermos escolher o que “meter dentro” todos os dias. O milagre existe potencialmente em cada alimento e todos eles têm funções diferentes e semelhantes. Não há um que se destaca, ao contrário do que muitas vezes nos querem fazer crer. Esta influência é facilitada pelos media, mas veiculada boca-a-boca pelos professores nas escolas, na sala dos professores, no bar ou na sala de aulas. É veiculada por profissionais de saúde em conversa de corredor ou em consultório. É veiculada pelo cidadão comum e pelos alunos nos autocarros, comboios, metro e outros meios de transporte.
Quando vamos parar e pensar? Como é possível que as pessoas valorizem tanto um alimento? Então a matéria que aprendem na escola não se aplica à vida real? Como posso crer nas mensagens da “roda dos alimentos” que me diz que para conseguir viver bem com saúde tenho que ingerir de todas as fatias todos os dias, nas quantidades que me são apresentadas e variar dentro de cada fatia e depois acreditar que se incluir nozes em todos os meus 5 iogurtes do dia consigo o ómega-3 que o médico me disse que era muito bom para baixar o colesterol? Ah, esqueci-me de dizer que o médico não sabia que eu como 5 iogurtes por dia! Mas ele não perguntou… Só disse para pôr nozes no iogurte…
Então o café, o chocolate, o vinho, a romã, o gengibre, o alho, não são bons? Não têm as propriedades que dizem que têm?
Um estudo recente veio demonstrar a perigosidade da valorização do alimento-milagre. Para que se consigam transportar para os humanos os benefícios com o vinho tinto encontrados em ratinhos, os humanos teriam de beber cerca de 100 litros de vinho por dia. Imaginem agora como estaria o adulto que o fizesse...
O alimento não actua sozinho e os nutrientes num alimento interagem com os do outro alimento que “metemos dentro” em conjunto. O milagre está em não nos preocuparmos demasiado sobre como vai o corpo fazer essas transformações e dar-nos saúde e ao mesmo tempo conseguirmos ter prazer em “meter dentro” esses alimentos nas suas diversas combinações. De preferência na companhia de alguém que nos é querido e num ambiente agradável.
O desenvolvimento de um espírito crítico de reflexão sobre o que nos rodeia é essencial. É uma competência que a Escola procura desenvolver. Se tem sido eficaz é a questão. Como o promover melhor, de forma a que o aluno esteja motivado a pensar, a pesquisar, a envolver-se? Como aplicar essa reflexão às questões da alimentação? O PASSE [programa de Promoção da Alimentação Saudável em Saúde Escolar] procura fazê-lo com o recurso a jogos pedagógicos. Trabalhar as mensagens publicitárias, a técnica da construção publicitária, o estudo do consumo alimentar e das suas motivações, o debate orientado em sala e os jogos com objectivos pedagógicos, são ferramentas importantes a usar e abusar, nesta época em que a velocidade de informação é de tal ordem que muitas vezes dificulta a reflexão.
Não temos tempo para parar e pensar – contrariar esta frase é absolutamente essencial para melhorar a saúde de todos nós, pois daí surgem as escolhas do que cada um “mete dentro” do seu corpo.

Débora Cláudio


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo