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Reportagem ilegível de quando os olhos ficam mais pequenos e a medir um desejo

Esta história começa (ou acaba) em Almeria, "rincon" andaluz sobre o Mediterrâneo, espelho do mar, que é o que significa Almeria, terra de paisagens desérticas e praias virgens. Uma história, ou uma reportagem, tem de começar (e acabar) de qualquer forma e esta pode ser assim, quase sem sentido, embora tenha ancorado nuns apontamentos de um caderno de viagem que me sobrou do mês passado.
Quando voltei a procurar Sofia, ela já tinha saído, apressada pela hora do início de um filme do Kusturica que nessa noite passava no Teatro Académico de Gil Vicente. Era ela, ela que é actriz residente da Escola da Noite, quem estava na bilheteira do Teatro da Cerca de S. Bernardo. Ofereceu-me dois bilhetes para o "Tumulto no Teatro" e disse-me ? o que foi ainda melhor ? que estava muito contente de me ver, de novo, em Coimbra.
Convém dizer, neste texto de despedida, que nasci no Porto, a 20 de Dezembro de 1953, e que voltei a nascer em Coimbra, em 1972, travestido de Woyzeck, soldado-cobaia na peça homónima de George Buchner, renascimento reposto em cena nos anos seguintes, a fazer teatro e jornalismo que é quase a mesma coisa ? mise en scene, mise en page, em francês no original.
Quando ainda falava com o João Rita, quando ele aparecia para duas de conversa e três de copos, soube, pelo próprio, que uma ex-amante dele, que nunca conheci, lhe oferecera uma aguarela de uma artista que se tornara anónima quando a assinatura, de tão aguarelada, ficou ilegível. Como este jornal vai ficar, já no próximo mês, mais ilegível do que esta reportagem que começa ou acaba no espelho do mar.
O João pensa que ela lhe ofereceu aquele original por não se lembrar do nome da autora, pintora com quem, em tempos, terá mantido um relacionamento suficiente para justificar a oferta da aguarela. Disse-me o que acabo de dizer numa noite de confidências e copos, na noite em que, num imenso ataque de generosidade, me ofereceu a aguarela.
Lembro que nessa noite falamos de Giovanni Andreoli, maestro do coro do Teatro Nacional de S. Carlos, que neste ano de 2008, bateu com a porta após várias desconsiderações profissionais como, por exemplo, ser informado do reportório da temporada pelos maquinistas do teatro. Também uma vez, quando eu já tinha, 25 anos de reposições em cena, "agendaram-me" uma reportagem sobre o impacto das bandeirinhas portuguesas de por na lapela dos casacos, para alimentar a febre patriótica do Euro 2004. Isto sem esquecer a condenação ao Purgatório por ter fixado as palavras de Virgínia Moura, no livro biográfico "Uma Mulher de Abril"
Muito se riu o desaparecido João Rita quando viu um Camões, desenhado pelo José Rodrigues, um Camões de dois olhos que bebia uma caneca de vinho tinto com a bandeira nacional por fundo, a servir de ponto de partida, de espelho de mar, a essa história das bandeirinhas de pôr a lapela. Uma reportagem muito menos perturbante do que esta que escrevo como último recorte de um condenado. Agora sim, com este ponto final, é que fiquei sem abrigo para certos textos e pretextos. Quando o José Paulo Serralheiro, a quem saúdo como um dos grandes directores de jornais com quem trabalhei, anunciou este ponto final.
Foi também quando, no mês passado, regressado de Coimbra, surpreendido pela actualidade de "O Doido e a Morte", de Raul Brandão, e pela inesperada operacionalidade do Teatro da Cerca de S. Bernardo, sobreveio uma vontade enorme de escrever sobre tudo o que tenho mantido em silêncio, e foi quando, talvez por ter estado à conversa com o António Augusto Barros, fui desenterrar uma foto que, em 1982, comprei em Sitges para ilustrar uma conversa que eu, o António Augusto Barros, o João José Figueira e um jornalista catalão desenvolvemos com Alfonso Sastre. Conversa, entrevista, história, que nunca publiquei e que não posso publicar pois de todos sei que sou o único morto, tão morto que já aqui deixei, no ano transacto, as memórias da minha morte
Não tenho palavras mas tenho a fotografia do grupo, fotografia que gostaria de ver publicada nesta última reportagem, nesta última história. Assim como se fosse uma foto convidada. Ou uma prenda, a propósito de o "El lugar del crimen: Unheimliche", narrativa de Alfonso Sastre, editada no ano de 1982. Das Unheimliche, no alemão que Freud escrevia em 1919. "El Sinistro", na tradução espanhola, "L'Inquiétante Etrangeté", na edição francesa, ou aquilo que é, estranhamente familiar.
O João Rita haveria também de gostar. Ele que desapareceu antes de "a Página", a resmungar contra uma dirigente sindical que, nos idos de 1992, tentava censurar títulos do jornal por os considerar desalinhados com a luta? Se fosse só ela!? E nem ela, nem eu, nem o João Rita sabíamos, ainda, da verdadeira dimensão e da verdadeira importância da dissidência. Como disse Milton Hatoum, um brasileiro, de origem libanesa "a memória e a imaginação são irmãs gémeas", o que também justifica que não possamos escrever sobre o que recordamos com nitidez.
Eu por exemplo ? e isto é quase uma pré-publicação -, guardo para sempre na memória, a imagem de um velho e raro piano de estudo, sem cauda, que estacionara, fechado, à entrada do meu bar preferido de Coimbra, a Clepsidra, "clep" para os amigos, piano que se fez numa espécie de mini balcão para pousar o copo e, especialmente no caso dos homens, encostar o corpo já meio cansado, quando os olhos ficam mais pequenos a medir um desejo. Alto e pára o baile, ninguém bate num tambor como Naná de Vasconcelos, um dos maiores percussionistas brasileiros, que está a entrar na "Clep", em noite da estreia coimbrã de Egberto Gismonti.
Como se os jornais de papel servissem para algo mais do que embrulhar castanhas assadas no Outono e peixe na lota, à revelia daqueles policias novos, ou mesmo mais do que subtrair à curiosidade prematura montras e outros painéis publicitários 3D? Termino pois esta despedida, chamando a atenção de todos os leitores que conseguiram levar a leitura desta reportagem ilegível até ao fim para o facto dela provar que, afinal, não perdem assim tanto com o fim de um jornal cujo primeiro número trazia uma gravura de Goya na primeira página.

Júlio Roldão


  
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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