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"É preciso globalizar os direitos humanos"

Domingos Lopes, presidente do Fórum pela Paz:

Domingos Lopes é advogado, vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados e presidente do Fórum pela Paz. Integra ainda a Audiência Portuguesa do Tribunal para o Iraque. Colabora regularmente como articulista em diversas revistas e jornais. Para além da sua actividade na advocacia, dedica-se também à escrita, tendo publicado livros que percorrem géneros como a novela, a poesia e o ensaio e dos quais se destacam: "Trajectos", "Quando os Santos Deixaram de ser Santos", "O Homem que Ri"; "Do Tamanho do Mundo"; e "Com Alá ou com Satã", em co-autoria com Luís Sá.
Recentemente, a Campo das Letras publicou um outro livro da sua autoria intitulado "Direitos Humanos em Questão ? dever de ingerência humanitária?", onde o autor questiona, entre outros temas, de que forma deverão ser reguladas as intervenções internacionais, que, sob a capa da ajuda humanitária, não passam muitas vezes de intervenções políticas de molde a favorecer um ou outro Estado. Foi precisamente este último livro, onde se abordam também de forma aprofundada a evolução dos direitos humanos e o papel das Nações Unidos num mundo cada vez mais multipolar, que serviu de argumento à entrevista que a PÁGINA reproduz nas páginas seguintes.

Em que contexto histórico e político surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem?

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) surge no contexto pós-II Guerra Mundial, no qual as potências vitoriosas, em particular os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, consideraram necessária a proclamação de um documento de carácter universal que pudesse constituir um elemento de referência para a comunidade das nações - que na altura, em 1946, era constituída por pouco mais de cinco dezenas de países.
A DUDH foi aprovada em 1948, e, tal como já referi, pretendeu-se aprovar um texto que conseguisse mobilizar a comunidade das nações em torno de um conjunto de direitos e liberdades que, a serem respeitados, impediriam o regresso ao poder dos regimes fascistas e a repetição das atrocidades que tinham conduzido à morte de quase 60 milhões de pessoas.

Em que princípios fundamentais se baseou a redacção do documento?

Sobretudo no princípio das liberdades individuais e no direito dos povos em optarem livremente pelo seu percurso político e ideológico. Poderemos se calhar dividi-lo em direitos clássicos, constituídos pelas liberdades e garantias políticas; numa segunda geração que incide sobre os direitos sociais e económicos - como o direito à educação, à saúde e à habitação; numa terceira que defende o direito à cultura e à identidade; e numa quarta geração, mais recente mas que emana do conjunto dos artigos da DUDH, que formula os direitos relativos ao ambiente.
Tendo em conta que naquela altura se poderá dizer que o mundo estava dividido entre dois sistemas, o capitalista e um dito socialista, numa primeira fase procurou-se sobretudo encontrar um equilíbrio entre as liberdades políticas tão caras ao Ocidente e os direitos sociais e económicos que constituíam a bandeira do bloco socialista. Julgo que hoje em dia é consensual que esta guerra ideológica está ultrapassada e que o respeito pelos direitos fundamentais do Homem não pode ancorar-se em nenhum dos lados por oposição ao outro. Os direitos do Homem impõem o respeito pelas liberdades públicas, pela democracia, mas se estes não forem acompanhados por direitos económicos, sociais e culturais ficam incompletos.

Sessenta anos depois, e tendo em conta que o contexto social e político já não é o mesmo, que desafios se colocam à DUDH?

Creio que o grande desafio que se coloca actualmente é a necessidade de fusão entre a herança da revolução francesa, que é uma revolução eminentemente burguesa contra a aristocracia, e a revolução soviética, isto é, conseguir a fusão entre os direitos colectivos e os direitos individuais. A História irá demonstrar-nos, pela sua própria dinâmica e pelas contradições que foram geradas, que nenhuma pode prevalecer sobre a outra. É necessário que os cidadãos tenham liberdades e vivam numa sociedade democrática, mas que não se fiquem por aí, porque isto é uma visão mutilada da própria História. É necessário que tenham também garantias de acesso à escola pública, à habitação, à saúde, ao emprego. Julgo que estamos a atravessar um momento histórico em que a fusão entre estas duas concepções é mais importante que nunca.

Fazendo um parênteses: numa das passagens do seu livro refere que há quem defenda a aplicabilidade relativa dos direitos humanos tendo em conta os diferentes conceitos de dignidade humana, utilizando como termo de referência os países muçulmanos, onde os valores aceites pela população nem sempre coincidem com a visão ocidental. Pode desenvolver esta ideia?

O Islão tem uma perspectiva fundamentalista segundo o qual não há direitos do Homem, há sim deveres do crente para com Deus. O conceito de direitos do Homem tem origem no Iluminismo, na luta dos comerciantes burgueses contra os privilégios da nobreza e da aristocracia. Este novo actor social emergente, indivíduo endinheirado sem origem nobiliárquica, é, de certa forma, um revolucionário para a época.
Apesar de ter contribuído de forma muito significativa para o Renascimento na Europa, através de descobertas que havia produzido na área da botânica, da matemática, da astrologia, da arte de navegar, etc., a civilização árabe e o Islão encontram-se nesta altura subjugados ao império turco Otomano e atravessam um longo período marcado pelo obscurantismo praticamente até ao século XX, época que marca o início dos movimentos independentistas. Neste sentido, e se imaginarmos aquilo que se passou na Europa, com a revolução Cromwelliana, a revolução francesa, a revolução Carlista, as revoluções alemãs, os direitos humanos não são um conceito que tenha acompanhado o desenvolvimento das nações sob o signo do Islão.
Ao passo que nas nações do mundo ocidental a legitimidade de um governo advém directamente do povo através do sufrágio universal, nos países islâmicos os governantes não são representantes do povo mas sim intermediários da lei divina - a Sharia, à qual eles também se submetem - através dos respectivos líderes espirituais. Isso significa que é em obediência a esses líderes espirituais, representantes da lei divina na Terra, e não a uma constituição, que é devida a obediência. Há, portanto, uma contradição insanável.

Mas tendo em conta o crescente "conflito de civilizações", como alguns a designam, pensa que alguma vez se poderá chegar a alguma espécie de consenso?

O Ocidente não terá grande autoridade nesta matéria tendo em conta a sua atitude de total ingerência e de guerras permanentes com o Terceiro Mundo e os países do Sul. Se do Ocidente o que lhes chega é a fome, o aperto, o FMI, as bombas e as guerras, naturalmente que as pessoas tendem a fundamentalizar-se e a radicalizar-se. Porque tal como os líderes espirituais islâmicos afirmam serem os intermediários de Deus, também o ex-presidente dos Estados Unidos afirma ter um contacto directo com ele. Ou seja, estamos numa época de fundamentalismos, herdeiros de uma civilização de uma certa barbárie, anti-racionalista.
Isto significa que dos dois lados se vão extremando posições, o que apenas favorece os elementos fundamentalistas mais conservadores. Se os povos deixam de ter elementos de referência, deixando de acreditar no que quer que seja porque não têm democracia, não têm perspectivas, não têm partidos de esquerda que apresentem alternativas e se confrontam com uma burguesia absolutamente parasitária, torna-se muito mais fácil seguir um pescador de águas turvas do que alguém que não tem a mínima credibilidade ao propor a racionalidade de um regime que seja fundado no respeito pela vontade soberana dos povos.
Se, além do mais, tivermos em conta que não existem naqueles países tradições democráticas e de liberdade - ao contrário do que acontece na Europa, onde elas são objecto de lutas permanentes desde o século XVIII até aos dias de hoje -, substituídas por um conceito de comunidade que prevalece sobre qualquer indivíduo e onde é muito mais importante a defesa da honra do que a possibilidade de votar ou de eleger alguém, podemos imaginar o que isto significará do ponto de vista da dinâmica dos direitos humanos.

As novas relações de poder, inscritas no que habitualmente se designa por nova ordem mundial, vieram alterar o conceito de direitos humanos?

Sim, num certo sentido, porque se em 1948-49 se assistia a um confronto em torno dos direitos sociais e económicos versus direitos individuais, hoje os direitos humanos têm sido referenciados do ponto de vista do dever de ingerência, concretizado em intervenções que, na maioria dos casos, servem apenas para acrescentar mais guerra à guerra já instalada. E ainda por cima se intervém muitas vezes não ao lado das vítimas mas ao lado dos carrascos, como foi o caso da operação Turquesa no Ruanda e no Burundi, criando na comunidade internacional um sentido de falta de ética e de prevalência da lei do mais forte.

Em que altura surge o princípio do direito de ingerência?

Em 1986, é criada em França a Secretaria de Estado da Acção Humanitária - que em 1990 passa a ministério. No ano seguinte, em 1987, é agitada a noção muito em voga de "dever de ingerência", por iniciativa do italiano Mario Bettati, professor de direito, e do actual ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner, ex-presidente da ONG Médicos sem Fronteiras e ex-administrador do Kosovo por parte das Nações Unidas, após a intervenção militar da NATO na Jugoslávia, num colóquio realizado em Paris intitulado "Direito e moral humanitários".
Apesar destes avanços terem aberto a porta à Resolução 43/131 das Nações Unidas, proposta pela França em Dezembro de 1988, este conceito de ingerência humanitária ou dever de ingerência surgiu apenas em força na cena internacional após o colapso da União Soviética, no começo dos anos 90. Apesar de se basear numa perspectiva da intervenção humanitária, o direito de intervir passa a ser definido por quem domina. É, portanto, um conceito unívoco, podendo ser utilizado de forma discricionária. Tudo isto decorre de uma nova ordem mundial que passou a ser unipolar, pelo menos momentaneamente, já que a tendência é que ela evolua para uma ordem multipolar.

Mas esse direito de intervenção está formalmente consagrado?

Não. É um claro abuso da ordem jurídica saída da II Guerra Mundial e subverte claramente a Carta das Nações Unidas, onde se enumeram quatro princípios fundamentais ? o direito à paz, o direito à não-ingerência, à soberania e ao respeito da integridade territorial de cada país. A Carta permite apenas a intervenção em duas situações: no caso do direito à auto-determinação e nos casos de guerra eminente, levando a que o Conselho de Segurança das Nações Unidas decida, por consenso, intervir, criando para o efeito um comité próprio, não sob a égide de um país mas sob o seu comando geral. Tudo o resto é conversa fiada, para utilizar uma expressão popular.

Mas existe alguma forma de estabelecer a distinção entre aquilo que é uma intervenção humanitária e uma intervenção para repor o respeito pelos direitos humanos?

Os casos do Tsunami na Ásia ou os terramotos na Arménia e no Paquistão são casos que justificam uma intervenção humanitária e que têm o apoio dos próprios governos desses países. Outra coisa bem diferente é uma intervenção em países com regimes totalitários. Qual o grau de totalitarismo e de mortandade que pode levar a fazer uma guerra? Tem havido diversas tentativas de tentar responder a esta questão, mas até hoje não houve nenhuma entidade com capacidade para decidir sobre esta matéria. O caso de Timor Leste foi praticamente inequívoco, porque o clamor das pessoas nas ruas foi de tal ordem que a própria ONU já não podia ignorá-lo, levando o Conselho de Segurança a decidir por unanimidade a favor de uma intervenção.

Será que se justifica a criação de uma entidade que permita balizar os contextos de intervenção em função do direito internacional?

Eu considero que as actuais instituições conseguirão perfeitamente cumprir o seu papel. A questão que se coloca é o facto de a Organização das Nações Unidas serem um espelho da própria comunidade internacional e de reflectirem as disparidades de um planeta onde as duzentas pessoas mais ricas possuem uma riqueza superior a cerca de 43 por cento da população mundial, em que existem 1500 milhões de pessoas a viver com dois dólares por dia e onde milhares de crianças morrem diariamente por fome e subnutrição. É este o mundo que temos e que se repercute na ONU.

Que reforma para as Nações Unidas?
Será que o modelo do Conselho de Segurança da ONU, saído da II Guerra Mundial, ainda fará sentido nos dias de hoje?

Penso que toda a gente concordará que não, o problema é saber qual o substituiria. Para além dos países com assento, quem entraria: apenas a Índia e o Japão? O Brasil e o México também terão direito a estarem representados? Deveria incluir-se a África do Sul e a Alemanha? Serão apenas as potências emergentes que terão direito a estarem representadas? E qual será o papel desses países: serão membros permanentes com direito de veto? São grandes questões que actualmente se colocam e para as quais é difícil reunir um consenso.

Isso levará a uma outra questão: será que as próprias Nações Unidas no seu todo não necessitarão de reformar o seu actual modelo de funcionamento?

Parece-me bem que se estude essa possibilidade, dado que a ordem mundial saída de 1945 não espelha a actual correlação de forças. Ninguém hoje em dia pode impor a sua tutela de forma unívoca. Nesse sentido, penso que o conjunto das potências emergentes, que se agrupam no chamado G-20, poderá desempenhar um papel muito importante.
Por outro lado, creio que as reformas devem ser efectuadas no sentido de melhorar o funcionamento da ONU, apetrechando-a de forma mais eficaz e dando-lhe maiores competências. Mas se essa reforma significar um retrocesso, isto é, se a Carta que os povos de todo o mundo proclamaram no pressuposto de uma convivência pacífica se transformar num trampolim de agressões de uns países contra outros, dos mais fortes contra os mais fracos, naturalmente que as Nações Unidas não terão futuro.

Considera a criação do Tribunal Penal Internacional como uma boa medida?

Penso que o TPI poderá desempenhar um papel positivo se não se destinar apenas a apanhar um certo tipo de bandidos e esquecer os bandidos amigos do Ocidente. A este propósito, convém lembrar que os Estados Unidos não reconhecem o TPI - pelo que nenhum país poderá julgar os crimes de guerra praticados pelo exército norte-americano, nomeadamente no Iraque e no Afeganistão -, dando bem uma ideia da forma como este país encara as Nações Unidas. Aliás, foi dito - e está mesmo escrito - por diversos elementos do gabinete do ex-presidente George W. Bush que ou a ONU se integra na política dos Estados Unidos ou deixará de fazer sentido para este país estar representado nos seus organismos

Parece-lhe que organizações como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional poderão, no futuro, a par dos organismos internacionais, desempenhar um papel mais preponderante na cena internacional?

São ONG que merecem toda a credibilidade, apesar de nem sempre podermos estar de acordo com as suas tomadas de posição. Mas quando as ONG são prolongamentos dos ministérios dos negócios estrangeiros de determinados países, há sempre o perigo de termos mais do mesmo. O fundamental, no entanto, é que possa ser a própria sociedade civil a organizar-se e a intervir nas questões políticas internacionais.

Refere no seu livro o facto de a ONU ter aprovado recentemente a criação de um novo Conselho dos Direitos Humanos. Que orientações poderão emergir desse organismo?

Eu creio que o novo conselho pretenderá sobretudo conferir uma maior preponderância ao dia-a-dia, desburocratizar o seu funcionamento e passar a ser directamente eleito pela Assembleia-Geral, o que, desde logo, poderá ter um impacto muito significativo ao nível do seu grau de representatividade. Porque, se verificarmos com atenção, a importância das Nações Unidas decorre da sua Assembleia Geral, que é uma espécie de parlamento mundial, mas que actualmente está muito desvirtuada. Fala-se muito do Conselho de Segurança e ignora-se muitas vezes a Assembleia; porém, é lá que estão representados todos os países do mundo. Uma maior dependência do Conselho de Segurança por parte da Assembleia Geral poderá inclusivamente conferir àquele organismo um maior impacto na cena internacional. Mas ainda é cedo para se saber de que forma tudo isto se irá concretizar.

Faz também referência no seu livro àquilo à necessidade de consagrar aquilo que denomina como futuros direitos. Pode desenvolver esta ideia?

Julgo que no actual quadro da globalização, em que o capitalismo reivindica para si todo o planeta, é importante questionar até que ponto teremos também de globalizar os direitos humanos. O direito ao trabalho pode ou não ser globalizado? O direito à liberdade de expressão e de organização, o direito à saúde podem ou não também eles serem globalizados? Estaremos condenados à guerra infinita na luta contra o terrorismo ou teremos de garantir às populações o direito ao emprego e a uma vida social, económica e política que lhes permita sentirem-se segura e identificar-se com o mundo actual? Porque se os únicos aspectos que se globalizam são a precariedade e a instabilidade, não poderemos esperar outro futuro que não seja a insegurança e a guerra.

Tendo em conta aquilo que ficou dito, que desafios acha que se colocarão aos direitos humanos no futuro próximo?

Os desafios estão lançados, e passarão sobretudo por conseguir conciliar os nossos interesses individuais com os direitos sociais e económicos. Para isso é necessário uma maior intervenção dos actores sociais que se reclamam da esquerda e uma maior participação dos cidadãos no sentido de propor uma transformação da sociedade em que todos, homens e mulheres que constroem a História, sejam os sujeitos dessa transformação. Isto sem que, por um lado, nunca se deixe cair a democracia, e por outro se tenha a consciência de que não basta votar de quatro em quatro anos para a garantir.
É necessário que no dia-a-dia, nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, um conjunto de direitos que estão cada vez mais em causa, como o direito à habitação, à saúde, ao ensino público, sejam reivindicados e se prossiga esta marcha que a humanidade foi fazendo no sentido de os alcançar.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Domingos Lopes
Advogado, vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados e presidente do Fórum pela Paz
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Domingos Lopes
Advogado, vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados e presidente do Fórum pela Paz
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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