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Economia política, cultura e línguas

1. Os ministros da Educação e da Cultura da CPLP (comunidade dos países de língua portuguesa) reuniram-se em Lisboa, em 14 e 15 de Novembro último. Desde a assinatura do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) que as reuniões da CPLP têm um ritual próprio. (1º) os ministros (e/ou chefes de Estado) reunidos, constatando que o Acordo continua letra morta, visto que há sempre países cujos Estados ainda não o ratificaram ou ainda o não implementaram, exortam os Estados recalcitrantes a fazê-lo "no mais curto espaço de tempo possível". (2º) os ministros reunidos decidem "apoiar a constituição, com a maior brevidade, de uma comissão composta por representantes dos estados-membros (?) para a elaboração de um vocabulário ortográfico comum da Língua Portuguesa, que inclua igualmente um léxico técnico-científico comum da língua". Foi o que sucedeu, pela enésima vez, no referido encontro. 

1.1. Desta vez houve, porém, três novidades de vulto. Da declaração final divulgada após o encontro, consta também a decisão de propor "a instituição de um dia da Língua Portuguesa" (LP), de "promover a utilização da LP como língua oficial e de trabalho no sistema das Nações Unidas, bem como em outras organizações internacionais, regionais ou agências especializadas" e de "promover um estudo sobre o valor económico da LP, para cada um dos estados-membros, a fim de confirmar o potencial efectivo da nossa língua comum no contexto internacional».

1.2. Teremos de aguardar pelas próximas reuniões da CPLP para saber qual o destino destas decisões. Mas as duas últimas levantam questões muitíssimo mais importantes do que a do Acordo Ortográfico. A LP é a 7ª língua mais falada do planeta (220 milhões de utentes segundo o Linguasphere Register of World?s Languages and Speech Communities) e tem estatuto oficial em 9 países espalhados por 4 continentes. Faz pois todo o sentido considerá-la também do ponto de vista da economia política. Como o espaço de que disponho é limitado, limitar-me-ei a sugerir algumas das ramificações desse ponto de vista, nomeadamente as que se prendem com a crise do sistema económico-financeiro mundial, com a eleição de um novo presidente dos EUA, país-epicentro dessa crise, e com a já longa supremacia deste país sobre todos os demais, deixando aos leitores a tarefa de atarem as pontas soltas.

2. Que podem esperar os países europeus (e mais alguns fora da Europa) do novo presidente dos EUA? Mais «multilateralismo», dizem quase todos os politólogos, dada a crise financeira, económica e política que grassa nos EUA. Mas nem os mais optimistas acreditarão que o novo presidente abdique de fazer sentir, sempre que os seus interlocutores derem sinais de o ter esquecido, que há um «lado» mais poderoso do que todos os outros e que (por isso) deve prevalecer - aquele, é claro, que lhe cabe representar. Este ponto, elementar, foi assinalado, com graça, por J. Diogo Quintela (um dos humoristas do «Gato Fedorento») numa das suas crónicas no «Público». Muitos dos políticos europeus que, entretanto, teceram loas e cantaram hossanas ao novo inquilino da Casa Branca, ficariam surpreendidos se soubessem que são eles, afinal, que não podem ser levados a sério. O sociólogo americano Alvin Toffler (apoiante da candidatura de Barack Obama) escreveu há 18 anos: "Depois de ter estado à frente de uma coligação global durante o último meio século, a América dificilmente pode imaginar a redução das suas ambições a uma só região. Mas não se trata apenas de psicologia. A economia dos EUA está ligada a tantas partes do mundo, e depende agora de uma variedade tão vasta de relações, que ver-se desligada de qualquer parte importante da economia mundial seria devastador. Nenhum dirigente político americano pode permitir que isso aconteça" (p. 497).

3. O que faz dos EUA o país (por enquanto) mais poderoso e influente do planeta? Uma combinação sui generis de factores cuja análise e explicação cabal não cabem aqui. Fiquemo-nos pelo factor mais evidente, mas do qual, estranhamente, nunca ou muito raramente se fala na vasta literatura sobre a chamada «globalização», o mais elástico eufemismo da nossa era. Refiro-me à sua política cultural, na qual a língua desempenha o papel principal. De facto, salvo melhor informação, só Toffler lhe deu o devido destaque no livro que citámos: Powershift (1990) - Os Novos Poderes, Livros do Brasil, 1991.

4. Mas avançámos depressa demais. Primeiro, passemos em revista o seu argumento. O poder envolve o emprego da violência, da riqueza e do conhecimento para conseguir que as pessoas actuem de uma dada maneira. Estas três alavancas formam a tríade suprema do poder em todas as esferas da sociedade humana, da família ao Estado. Cada uma destas alavancas do poder assume, porém, muitas formas quantitativa e qualitativamente diferentes, consoante as épocas e os países.

4.1. A violência (o uso da coacção física), por exemplo, não precisa de ser real. A ameaça do seu uso - incorporada nos músculos de um rufião, no revólver de um bandido, na bomba-relógio de um terrorista ou nas ogivas nucleares de um porta-aviões de um Estado poderoso - é muitas vezes suficiente para conseguir aquiescência. A violência espreita também por trás de todas as leis e de todos os actos de governação. Em última análise, todos os governos, mesmo os mais democráticos, contam com soldados e polícias para imporem a sua vontade ou, se legitimados pelo voto popular, a chamada «vontade geral».

4.2. Mas a violência padece de grandes desvantagens. Para começar, produz danos terríveis: encarceramentos, torturas, mutilações, mortes, destruições patrimoniais e ambientais. Acresce que mesmo quando resulta, mesmo quando é legítima, mesmo quando é justificada, produz resistência, ressentimento, ódio e desejo de vingança. Muitos dos seus sobreviventes, sobretudo se forem (ou se se julgarem) vítimas inocentes, ficam à espera da primeira oportunidade para retaliarem. A sua principal fraqueza é, porém, a sua inflexibilidade. Só pode ser utilizada para ameaçar e punir. É, em suma, poder de baixa qualidade.

4.3. A riqueza, por contraste, é um instrumento de poder muito mais versátil. Em vez de se limitar a ameaçar e punir, pode oferecer recompensas graduadas: prémios, pagamentos, mordomias, descontos, subornos, em dinheiro ou em espécie. Pode, por isso, anestesiar consciências, comprar a lealdade ou a obediência, deturpar a verdade, fabricar consensos, arregimentar votos, apoiantes e sequazes, fazer e destruir reputações e muito, muito mais.

4.4. A alta qualidade do poder implica, todavia, muito mais do que isso. Implica eficiência - utilização inteligente do menor número de recursos de violência e de riqueza para alcançar um objectivo. Só o conhecimento está em condições de satisfazer esse desiderato. Além disso, também serve de multiplicador - e multiplicador supremo - da riqueza e da violência. Pode ser utilizado para aumentar ou poupar a riqueza disponível, para aumentar ou aperfeiçoar os meios de violência necessários para alcançar um dado objectivo. Assim, o conhecimento apresenta-se hoje não apenas como a fonte do poder de alta qualidade, mas também como o ingrediente mais importante da violência e da riqueza. Por outras, palavras, o conhecimento passou da posição de adjunto do poder da riqueza e da violência para a posição de comando. Hoje é ele o chefe da tríade do poder. Daí se segue que o poder máximo está à disposição daqueles que têm a possibilidade de utilizar esses três instrumentos numa interconjunção que assegure ao conhecimento a posição dominante. Desde (pelo menos) o fim da 2ª guerra mundial, são os EUA que melhor têm conseguido fazê-lo. Nisso reside a fonte da sua supremacia não apenas política, económica e militar, mas também cultural. Uma das razões do seu êxito reside no modo como persuadiram meio mundo - a começar pelas chamadas «elites» no Japão, na Europa continental e na China - de que línguas há muitas, mas que só uma, a inglesa, é que seria a aliada natural do conhecimento.

5. Exemplifiquemos. Na «economia super-simbólica de conhecimento», qualquer informação ou conhecimento que seja comunicado requer: 1) uma rede de canais ou media através das quais a mensagem flui; 2) uma base científica e tecnológica que assegure a construção, a renovação e o alargamento incessante dessa rede; 3) uma língua comum aos remetentes e aos destinatários das mensagens, o único modo de poupar tempo e despesas de tradução. Dêmos agora a palavra a Toffler:

6. "Assim, a primeira enorme vantagem de que os Estados Unidos desfrutam, neste momento, é, simplesmente, a sua língua. O inglês é a língua mundial na ciência, no comércio e na aviação internacionais, assim como em dezenas de outros domínios. (..) O facto de centenas de milhões de seres humanos compreenderem pelo menos um pouco de inglês dá uma poderosa vantagem mundial às ideias, estilos, inventos e produtos americanos. Uma outra vantagem é a ainda forte base científica e tecnológica da América. (..) A sua base técnico-científica ainda se agiganta quando comparada com a dos seus rivais.(..) Uma área de catástrofe reconhecida da América é o seu sistema de ensino estilo fábrica, devastado pelas drogas, pela violência e pela alienação. (..) Existe, no entanto, uma fonte-chave do poder global da América que compensa o seu deserto educacional: o seu não quantificado, mas enorme, impacto cultural no planeta. Não se trata de uma questão de qualidade - a qual poderá, claro, dar origem a discussões apaixonadas. Trata-se simplesmente do facto de a cultura, de uma ou outra forma, fluir dos EUA para o exterior. Temos, assim, que são mais os livros americanos traduzidos no estrangeiro do que os livros estrangeiros traduzidos por editores americanos. De certo ponto de vista, é lamentável, pois priva os Americanos de travarem conhecimento com ideias e opiniões valiosas. Mas a verdade é que reflecte o enorme superavit da América no comércio cultural. Feliz ou infelizmente, existem em todo o planeta enormes multidões ávidas por adoptar estilos de vida, atitudes, modas, ideias e inovações ocidentais, sem dúvida, mas também especificamente americanas. (..) A influência crescente dessas imagens, juntamente com o fluxo fecundo de ciência e tecnologia, mais do que apenas o poder económico e militar, é o que torna os EUA tão ameaçadores (..) Filmes e programas de televisão americanos (..) são os que mais se vêem em todo o mundo. As outras grandes potências não estão, simplesmente, na corrida. Falando de modo geral, os EUA continuam a ser uma fonte rica de inovação na ciência, na tecnologia, na arte, nos negócios, nas imagens e no conhecimento no seu sentido mais lato. Essa vantagem poderá diminuir nas décadas futuras, mas outras nações ou regiões acharão mais difícil ultrapassar a liderança cultural americana do que construir um novo sistema armamentista ou integrar as suas economias. (op.cit., p.492-495).

José Manuel Catarino Soares


  
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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