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Que há-de ser de nós?

Quantas Maria de Lurdes Rodrigues vamos ter que aturar para compreendermos que a acção de um ministro da educação não poderá ser confundida com a demanda do Santo Graal? Quantos ministros armados em cavaleiros andantes vamos ter que sofrer para compreender que um projecto de governo não pode ser entendido como uma aventura que se vive ao sabor de crenças e de convicções cujos fundamentos radicam num senso comum que, pese o modo como seduz os fazedores da opinião publicada, não permite enfrentar os problemas com seriedade e rigor.
Independentemente de qualquer juízo político acerca da acção governativa da actual titular da pasta da educação, há que reconhecer que foi o seu fulgor tecnocrático que a conduziu à sua e à nossa desgraça. Não foi por acaso, ou por manipulação de quem quer que seja, que 120 000 educadores e professores voltaram, em Novembro, a descer à rua, pulverizando o recorde que havia sido batido oito meses antes na histórica manifestação de 8 de Março. Não foi tão pouco, e apenas, por causa da avaliação de desempenho. Esta foi, somente, a gota de água que fez transbordar o copo. Um copo que começou a encher quando, em nome da defesa da Escola Pública, a actual equipa ministerial contribuiu para, num primeiro momento, promover o descrédito dos educadores e dos professores portugueses, acusando-os publicamente de incompetência, responsabilizando-os por tudo e mais alguma coisa, nomeadamente pela assunção de desafios educativos que estão longe de poderem ser entendidos, apenas, como desafios escolares. O copo, entretanto, ficou quase cheio, quando, em nome da necessidade de se reconhecer o mérito individual dos professores, a actual equipa ministerial impôs um estatuto da carreira docente que mais não fez do que abrir as portas ao tipo de mediania e de calculismo que, nos jardins de infância e nas escolas, matam quer a possibilidade de desejar, quer a possibilidade de sonhar, quer a possibilidade de se fazer diferente. A aprovação do novo modelo de gestão encheu, finalmente, o copo. Um copo que transbordou, então, quando o modelo avaliação de desempenho foi tornado público e se iniciaram as primeiras actividades de operacionalização do mesmo, no seio das escolas, evidenciando-se, para quem tivesse dúvidas, que um tal modelo nada avalia, porque essa não é, de facto, a sua função.
A manifestação do passado dia 8 de Novembro mostrou, de forma inequívoca, que os educadores e os professores portugueses não se identificam com a política educativa do governo Sócrates. Só que isso é passado e presente. E o desafio que temos pela frente é o de saber qual o futuro que queremos, qual o futuro que poderemos ambicionar. A escola é o espaço que justifica a nossa profissão. Mesmo que a ministra esteja em coma político, ligada às máquinas enquanto for partidariamente necessária a sua presença no governo Sócrates, é nas escolas que os professores continuarão a labutar, assumindo o lugar que lhes compete assumir como interlocutores qualificados de gerações sucessivas de jovens que deverão encontrar, nesse contexto, um lugar que os possa ajudar a ver e a participar no mundo de forma mais justa, mais exigente e mais humana.
Tempos difíceis estes, onde se continua a exigir dos professores o que sempre se exigiu, ainda que num contexto marcado pela descrença que uma ministra andou a semear ao longo do seu mandato político. Uma descrença que impede, afinal, a possibilidade de se transformar a Escola num espaço cultural significativo e num bem público de primeira necessidade. Uma descrença que, deste modo, se transforma em mais um desafio que temos que ser capazes de enfrentar.
Que há-de ser de nós? Pergunta o cantor, lembrando-nos que «já enchemos praças e ruas, já invocámos dias mais justos». Não o esqueçamos quando tivermos que pensar no que poderemos fazer após o consulado de Maria de Lurdes Rodrigues à frente do Ministério da Educação. Não o esqueçamos porque seria dramático que o fizéssemos, para nós e para os alunos com quem partilhamos o dia-a-dia. Seria dramático que esquecêssemos que foi em nome da necessidade de ser professores que descemos à rua, uma necessidade que, se por um lado, nos obriga a recusar esta ministra, por outro nos obriga a repensar, hoje e sempre, como é que queremos e como é que poderemos continuar a ser professores.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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