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Leituras de um Verão

Recordo-me de ter escrito há cerca de uns quatro anos um texto onde dizia que as interrupções lectivas (Natal e Páscoa) e as férias eram uma boa altura para os professores lerem alguns livros em busca de um indispensável desenvolvimento profissional. Fui confrontado por um colega que me acusou de ironia e demagogia.
Os anos passaram e continuo a pensar da mesma forma, na medida em que é necessário tomar consciência do quanto é importante os professores reflectirem sobre as suas competências e verificarem se elas são suficientes para ensinar todos os alunos. Sebarroja salienta, a título de exemplo, a vantagem de uma autoformação e do fomento do hábito de leitura entre o professorado como condição sine qua non para reflectir e melhorar a prática. Qualquer um com dois palmos de testa percebe que também eu considero as férias como um momento privilegiado para "desligar" e fugir da rotina da vida profissional, mas tal não invalida que ocasionalmente façamos algumas leituras diagonais. Ao fim e ao cabo, foi o que eu fiz em certas noites de Verão.
As primeiras leituras (re)começaram na educação familiar para depois me debruçar na educação escolar. No fundo, a família e a escola são inseparáveis, apesar de nos apercebermos do contínuo divórcio. Desde o nascimento da minha primeira filha, assumo que fui um desenfreado pai consumidor de livros sobre a nobre e tão difícil arte de educar. Não me arrependo daquela minha preocupação exacerbada! Impressiona-me mais o facto de os pais não se preocuparem minimamente em reflectir sobre a educação que transmitem aos seus filhos. Impressionou-me ver demasiadas crianças permanentemente na piscina, não evitando as horas críticas, enquanto os pais se deliciavam a beber e a comer nas espreguiçadeiras e no bar do hotel. Impressionou-me ver uma criança de 3 anos a chamar palhaço ao pai e a sua única reacção foi dobrar rapidamente o jornal e ameaçá-la fisicamente. Impressionou-me ouvir a conversa de uma miúda de onze anos sobre a sua prima: "ela tem tudo. Os pais são ricos. Só não tem a companhia deles porque estão sempre a trabalhar no restaurante".
As minhas outras leituras mostraram-me, mais uma vez, que existem diferentes modos de fazer a escola. Encontramos alternativas às salas impessoais com as carteiras arrumadinhas em carreirinha, a fim de melhorar o gosto pela escola e o desempenho académico dos alunos! Que o ensino pode ser dirigido à turma, mas também cognitivamente orientado, organizado em pequenos grupos, em tutorias e tutorias de pares. Que ensinar para uma aprendizagem de qualidade pressupõe utilizar diversas abordagens à aprendizagem (centradas não só na memorização mas sobretudo na compreensão)! Que o professor deve desenvolver uma atmosfera relacional amigável na sala de aula, em que a sua preocupação se centre ao nível da formação de cidadãos e não estritamente na transmissão de conhecimentos.
Angustia ver professores novos sem coragem para reflectir e quebrar rotinas. Angustia ver professores agarrados aos muitos anos de experiência para justificar, por um lado, a credibilidade das suas práticas de ensino e, por outro lado, para não as transformar e tentar melhorar.
Parafraseando Rodrigo da Fonseca, um politico português do século XIX, nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos, é triste.
Angustia saber que esta frase é ofensiva, mas porventura certeira!

Miguel Gameiro Silva


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Miguel Gameiro Silva
Ponta Delgada. Açores
Miguel Gameiro Silva
Ponta Delgada. Açores

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