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A morte de uma alma sem inquilinos

(Lisboa, 1925-2008)
Sei que escolheste o dia certo para morrer: o dos Reis Magos com quem sempre te deste muito mal. Mas já estou a ver-te com as mãos cheias, não de incenso ou mirra, e muito menos de ouro que nunca tiveste cá nesta vida, é verdade, mas com um punhado de esferográficas para continuares a dar notícias do Paraíso.
Sei como foram doridos os últimos dias no "lar de velhinhos" em que guardaste a tua solidão na antiga Aldeia Galega ou Montijo de outras histórias na outra banda do Tejo. Mas chega-se e parte-se em qualquer lado a caminho do Paraíso, mesmo contra a nossa vontade. Não quero recordar os aspectos que permanecem da caminhada comum de muitos anos com a literatura pelo meio, nos sonhos e projectos que por vezes disso não passaram, mas ficam comigo as sombras e histórias de tantos lugares por saber que tão cedo não serás esquecido. Entre os amigos e conhecidos, mas sobretudo pelo exemplo maior da obra literária e crítica que, nos altos e baixos da tua vida, pudeste e soubeste criar, mesmo que tenhas dito que toda a aventura não passou de um "contar histórias" para viver ou saberes utilizar a tua charrua (a velha máquina de escrever que tantas vezes puseste no prego por absoluta necessidade de sobrevivência). Tudo isso está escrito, eu sei, nas páginas do teu "diário remendado", nas ficções ou nos textos de circunstância: "Os Namorados", "O Caso das Salsichas Voadoras", "Comunidade". "Teodolito" ou "O Libertino Passeia por Braga". Tudo isso se sabe, é verdade, mas exactamente por isso é que serás sempre um ponto de referência pelo que criaste na literatura portuguesa da segunda metade do século vinte. E ainda pelo sentido crítico da tua trincheura cultural, sempre na berlinda ao longo de anos, antes e depois de Abril, e que reuniste em vários livros de intervenção e de guerrilha. Não poupaste ninguém e essa foi a tua melhor e mais coerente qualidade pessoal.
Mas consente que, nesta hora de despedida, possa ainda evocar os passos essenciais da tua via-sacra que durou mais de oitenta anos, na memória dos tempos de infância que sempre guardaste dessa velha casa na lisboeta rua dona Estefânia: "o corredor tinha onze metros à direita a porta que dava para a escada havia um desvão ou desvio, pequeno, dois metros nem tanto, com uma porta que dava para uma saleta pequenina, aconchegada, quase sempre fechada e sem ninguém; "a sala verde" assim chamada por causa dos estofos das cadeiras e da cor do reposteiro, pesado e cheirando a um pó muito velho e denso" Ou ainda na evocação de um pai estendido na cama, em silêncio, de olhar frio e fixo. Ou mais tarde na admirável narrativa que é "Os Namorados", datada de 1962, com uma circulação muito restrira em edição copiografada: "Dos jardins fantásticos da minha infância que eu nem tive infância nasci assim já velho mas sou um bonacheirão incapaz de rancor aos meninos que tiveram infância e jardins, trago um na lembrança que era um jardim muito engraçado havia um coreto a música tocava aos domingos havia um urinol com aquele velho maluco que fazia coisas aos rapazes e também lembro um jardim, outro ou seria o mesmo que era um jardim muito engraçado com uma estantezinha verde o tipo que emprestava os livros à gente tinha uma farda preenchia-se um papel com o nosso nome e morada era coisa séria. Os jardins da minha infância tinham lagos peixes vermelhos flores subtis perfumes quentes cores triviais recantos de sombra lugares comuns esconderijos giros para a gente brincar".
Olha, meu caro, esses jardins ainda existem, mas há muito tempo que deixaste de dar por eles, só morreu o velho maluco do jardim do Constantino, e ainda lá está, creio, o coreto e a mesma estante de livros.
Mas a tempo soubeste estabelecer mais do que um "exercício de estilo": foram e são as razões de uma moral que define a tua obra. Não uma moral para teu uso próprio, mas que caracterizou todo o teu percurso literário e crítico, no bem e no mal de nunca seres, como foi fácil rotular-te, um "escritor maldito" - como escritor tiveste sempre tudo e de maldito quase nada, e com toda a veemência pudeste assim clamar: "Aos que me chamam maldito nas barbas ou pelas costas, daqui grito sem ira nenhuma ou rancor, como saudação amigável: - Raios os partam!"
A obra literária que nos deixas comestível ou interventiva, crítica ou denunciadora de muitos dos nossos vícios, serviu acima de tudo como o grande e único pretexto de estares vivo e fazeres desse teu caminho triste e atribulado, como foram os destinos de Tomás Pinto Brandão, Bocage, Tolentino, Gomes Leal, Sampaio Bruno, Pessoa ou Raul Leal, entre outros, a epopeia nua e crua, trágica e asfixiante da tua própria vida, oito filhos às costas e a escrita sempre como forma de pulsão pessoal e mesmo de redenção até a morte chegar em noite fria e chuvosa de Janeiro.
Mas partes deste mundo com saudades, eu sei, e na certeza de que deixaste, repito, uma obra exemplar pelo rigor da escrita e pela verdade de tudo que soubeste narrar, denunciar ou criticar. Sempre. Longe ou fora de qualquer espécie de literatice e na rebeldia assumida de a vida ser para toda a gente, menos para os papalvos, como dizia o padre Manuel Bernardes, "uma floresta de enganos" e sou um desses que sabem que não partiste enganado. Claro que não. Estás, finalmente, em paz contigo e alguns me dizem que te despediste com alegria deste mundo. Descansa em paz, meu caro Luiz Pacheco.

Serafim Ferreira


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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