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Nome e preconceito. Somos todos ilegais...

"Space...the final frontier. These are the voyages of the Spaceship Enterprise. It's five year mission: to explore strange new worlds, to seek out new life and new civilizations- to boldly go where no man has gone before."

Estas são as palavras, para muitos inesquecíveis, de Captain Kirk, personagem da série televisiva de sucesso global Star Trek, na busca de vida inteligente no insondável universo.

Captain's Log 1? O estatuto de imigrante na Europa continua a ser construído entre barcaças de fragilidade imensa, viagens infernais em contentores, redes de tráfico de mão-de-obra escrava, infindáveis vistos turísticos, entre tantos outros expedientes e cambiantes naquilo que podemos chamar a Schengalândia. O Acordo de Schengen é uma convenção entre países europeus sobre uma política de imigração comum e controle compartilhado de fronteiras. O objectivo inicial, utópico e retórico, era o de abolir as fronteiras entre os Estados que assinaram tal Acordo. Em poucos anos, tornou-se num modelo de vigilância e protecção mútua face aos contingentes desordenados e incontroláveis de imigrantes. De facto, um cidadão de um país terceiro, pode entrar e viajar no território Schengen por um período máximo de três meses, desde que satisfaça as seguintes condições: um documento de viagem válido; um visto de estadia de curta duração; capacidade de demonstrar o objectivo da viagem; meios de subsistência suficientes para o período de estadia e para o regresso; e não deve estar referido no Sistema de Informação de Schengen nem ser considerado como uma ameaça à ordem pública ou à segurança nacional.
Captain's Log 2 ? Os programas matinais na rádio são marcados por um estilo animado a roçar o patético, música enérgica e animadores joviais. Até as informações de trânsito são pretexto para umas piadas indecifráveis. Tudo para produzir uma sensação de bonomia para mais um dia de trabalho, alienante, cansativo e desinteressante. Recentemente, tive a infeliz ideia de partilhar esta experiência matinal com uma rádio de grande audiência? a Rádio Comercial. O ambiente era hilariante e eufórico: os animadores anunciavam, nas suas palavras, "a campanha de solidariedade que faltava fazer!". Tratava-se de apoiar Zongo, um jogador de futebol do União de Leiria, e cuja permanência em Portugal havia sido questionada pelo Serviço de Fronteiras e Estrangeiros. O referido jogador do Burkina Fasso havia incorrido no lapso ou incumprimento dos requisitos acima referidos para a obtenção de visto de estadia e estava ameaçado de expulsão. Os jornais desportivos haviam dado um destaque muito sumário à notícia, e, de acordo, com uma entrevista ao jogador, este, muito apreensivo com a sua situação, havia solicitado apoio jurídico; o sindicato dos jogadores estava também a encetar algumas tímidas iniciativas. Naquela emissão radiofónica esboçava-se assim mais uma "graçola" matinal em tom de fait-divers sobre a situação de Zongo ? similar afinal à de tantos imigrantes ilegais, como os mediáticos casos dos portugueses deportados do Canadá ou dos trabalhadores escravos em Espanha, na Holanda ou Inglaterra. A expressão de todos os preconceitos estava contida no modo primário de gracejar com o seu nome de sonoridade exótica e na humilhação pública em forma de canção jocosa intitulada "Salvem o Zongo" que o site da rádio divulga: Zongo, Zongo / Ficar por cá era tudo o que ele queria / Jogando a bola pela União de Leiria / Mas o SEF diz que o visto dele é irregular / Então querem que o Zongo se ponha a andar.
Captain's Log 3? A alusão a este caso não é tanto para averiguar se o SEF tinha razão ou não no mandato de expulsão, ou se a idiota emissão matinal daquela rádio merece um processo judicial por ofensa. A questão é pura e simplesmente da ordem do preconceito mais elementar, xenófobo e etnocêntrico. E revela o abuso de poder com que radialistas, sem qualquer pudor ou ética jornalística, fazem uso de um meio de comunicação de massas, numa estratégia, francamente discutível, de humor. A questão essencial é que todos os "Zongos"? do Burkina Fasso em Portugal ou portugueses no estrangeiro? serão sempre frágeis alvos e anedotas fáceis que jamais terão direito de resposta em igual proporção, com igual destaque. Aos "Zongos" ilegais resta esperar pelas cartas de expulsão ou deportação ou pela magreza salarial dos poucos dias na "terra prometida". Aos radialistas fica a verve e o rasgo humorístico e um enorme mau gosto, para poupar na adjectivação. Na nave Enterprise da minha juventude, Captain Kirk procurava ultrapassar a última fronteira em busca de formas inteligentes, certamente com nomes e fisionomias muito diferentes da sua; bom, mas isso era em 1966 nos seus diários de bordo? agora que estamos definitivamente na era da globalização, ser global, a julgar por este sórdido episódio, é assumir que as formas inteligentes têm apenas nomes, fisionomias, humores e programas matinais semelhantes aos nossos. Sendo assim, prefiro definitivamente tornar-me ilegal ou como sugeria Manu Chao: clandestino.

Paulo Raposo


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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