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Aquilino Ribeiro no Panteão Nacional

Mestre dos mestres maiores da literatura portuguesa da primeira metade do século vinte, Aquilino Ribeiro (1885-1963) repousa para sempre no Panteão Nacional, por ser uma excelsa glória da criação literária portuguesa de todos os tempos e depois de terem passado mais de quarenta anos sobre a sua morte física. E, na merecida homenagem que lhe foi prestada, podemos ainda evocar as palavras de António Pedro, homem de teatro, poeta, pintor e grande interventor cultural, que ao publicar em 1942 o seu belíssimo romance Apenas uma Narrativa o pôde dedicar com toda a sinceridade "ao senhor Aquilino Ribeiro", falando deste modo: "O meu Amigo é dos bons e eu faço por merecer-lhe a companhia. O resto são diferenças que dizem respeito à sua educação e à minha, ao seu gosto e ao meu, à sua Beira de desvirgadas, padres, lobos e almocreves e ao meu Minho de cantorias e emigrantes, milho verde, leiras pequenas, pedinchas, sovinas e fantasmas líricos".
Na vastíssima obra criadora que nos legou, em dezenas de romances, histórias, crónicas, estudos e biografias ao longo de cinquenta anos de incessante trabalho literário, o consagrado autor de A Grande Casa de Romarigães é de facto um nome que se imortalizou pela galeria de gentes que recuperou dentre o seu povo, mesmo que tivesse vivido muitos e largos anos na capital, animando os meios literários, não deixando de intervir a cada passo na vida cultural, social e política do País, ou como disse Fernando Namora: "Aquilino trouxe consigo a província para Lisboa e nunca mais a abandonou".
Por isso, nessa galeria de tipos e paisagens, pela Beira Alta de infância e de adolescência, ou nas suas andanças de velho romeiro de muitos caminhos e de tantas outras terras, o autor de Maria Benigna nunca esmoreceu no traço rigoroso das figuras que compõem esse cenário de rostos humanos escanhoados na verdade e pujança das linhas que a língua portuguesa tece e perpassam pela nossa memória, marcados por tantas artimanhas e astúcias, o corpo e a alma de gentes como Malhadinhas, António Malhadas de seu nome e almocreve de ofício pelos lugares de Aveiro, Arouca ou Lamego, ou ainda de outras figuras como Galhorras, Zé Lumba, Cleto, Milfomes ou Bizarra, como se a traço grosso, na ironia das falas e das situações recriadas, estes homens e mulheres de vidas airadas e torturadas, Aquilino as desejasse trazer ao nosso convívio em horas e dias de outras tormentas a sombra de espantalhos que passaram na vida e foram do seu conhecimento ou trilharam desde cedo os pedregosos e escuros caminhos do mundo.
Mas entre as personagens que nos ficam da prosa vibrátil e encantatoria, de vocábulos largos e redondos, numa adjectivação que parece rebuscada e mais não é do que a própria raiz vocabular do povo, o seu lírico e humaníssimo Malhadinhas não deixa de sonhar: "Se fosse rei uma semana, afianço-lhes que mondava Portugal. Uma fogueira em cada outeiro para os ministros, os juízes, os escrivães e os doutores de má morte. Para estes decretava ainda cova bem funda, com obrigação de cada homem honrado lhes pôr um matacão em cima. Uma choldra de ladrões!".
É claro que Aquilino Ribeiro sempre se entendeu, na intencionalidade narrativa do bronze em que moldou os seus livros, na vivência das terras e das gentes, dos sonhos e conflitos, das lutas e fugas, das manhas e comércios de tantos anseios. E assim num mundo de grandes desavenças e mortes, duras e difíceis aventuras pelas serras da Nave ou da Lapa, nas paragens da sua Beira que nunca esqueceu, o que se impõe é ainda essa galeria de "lazarillos" ou "pobres de pedir", almocreves e vilões, padres e filhos de padres em revoadas de amores escondidos que, a todos os níveis, soube retomar por outros caminhos no exemplo dos seus maiores, para nos oferecer, em retratos retocados através de ricas e variadíssimas cores, na sabedoria certa e ajustada, trabalhada como ourives de fino quilate, por saber utilizar a língua pátria no rigor dos traços das gentes que continuam vivas, andam por aí aos tombos e sempre a nosso lado quando menos se espera. Ontem e hoje,
Ora, nos múltiplos arquétipos que se descobrem na prosa aquiliana, mesmo quando se desdobra no plano da biografia romanceada ou crónica histórica, o autor de Quando os Lobos Uivam talvez não tenha pintado, em sentido pícaro tão profundo, uma outra figura que se arvore como paradigma da arte de ser português ou mesmo como emblema de ser um "português sem mestre". De facto, a força telúrica e humana de Malhadinhas prende-se com a dimensão de um Portugal interior, lendário e vivo, antigo e de hoje, arcaico e agarrado à pureza inicial dos tempos, não por não querer mudar fosse o que fosse, mas porque na imaginação sensorial de Aquilino, nas vicissitudes de uma rica e prolongada experiência humana, cabe tão-só o espaço para se ouvirem os ralhos e os protestos, dizer-se dos medos e dos sonhos pelos caminhos da vida por essa "estrada de Santiago" que sempre o levou a qualquer parte.
E por isso Malhadinhas desabafa: "Tomara-me eu outra vez com vinte anos e saber o que hoje sei! Diabos me levem se não fosse rei. Mas rei a valer, e nenhum rei de copas, ali... de ceptro em punho, todos ajoelhados diante de mim a lamber-me os butes, sabendo que o era, pois rei era eu sem o saber. Que menos, com o rapariguedo à volta: Antoninho, cravo roxo saúde de cavalo, açafate o que se chama farto, caminhos desimpedidos?!". Porque o autor de Jardim das Tormentas se confessa "romeiro de outras estradas na via sinuosa de outros destinos", sejam estes cruzados pelas sombras de Cervantes, Camões, Cavaleiro de Oliveira ou Camilo, o trajecto por onde avançam, tantas vezes à solta de uma imaginação ou verve aparentemente fácil ou estudada, esses pedaços do mesmo corpo (português e vivo, claro) que dá a imagem absoluta de um povo astucioso, malhadinhas, faz das fraquezas forças e a cada passo esgrime contra os moinhos de vento que se deparam no caminho, vestidos com as roupagens de magistrados, padres, lavradores, ricaços e conselheiros, fidalgos e brigões, contrabandistas e almocreves, enfim, toda uma corte que no imaginário aquiliniano pede meças para se sobrepor à galeria de outras gentes em negócios de azeite, presunto ou volfrâmio, ferreiros, lojistas e sacristas de toda a espécie. E nessa variada galeria, ou antes, nessa "arca de Noé" sempre tão povoada de rostos e cores, gritos e falas, como se o mundo (e a vida dentro dele) ressuscite a todo o instante, o sol nasça e afinal não é para todos, a ideia que nos fica é ainda a da distância que se percorre entre o ser e o ter, o pensar e o existir, o viver e o morrer.
Mas o que surpreende e indigna é que, no cerimonial oficial a nível do Estado português, se tenha feito o que se há muito se impunha para colocar no Panteão Nacional as ossadas do autor de Romance de Camilo, mas em flagrante e incompreensível atitude não se entende bem as razões por que no ensino secundário desde há anos tenha deixado de ser de leitura obrigatória todas as obras de Aquilino Ribeiro. Então, como querem que a obra aquiliniana seja lida, estudada e apreciada? Quando é que o Governo, através do seu ministério da Educação, repõe essa obrigatoriedade escolar ou corrige desse modo uma lacuna que nada faz compreender na hora de Aquilino repousar no Panteão Nacional? Oxalá tudo se corrija em breve e os meus netos possam ler no segundo ciclo um dos seus belos romances, por exemplo, Volfrâmio, Mónica ou Andam Faunos pelos Bosques.

Aquilino Ribeiro
OBRAS COMPLETAS
Bertrand Editora / Lisboa.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 173
Ano 16, Dezembro 2007

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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