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Podia ser uma história de Natal...

Da dignidade das professoras e dos professores de Portugal

A mãe havia de sair de casa pelas cinco e meia da manhã com umas galochas(1) num saquito de plástico, para apanhar o primeiro trolley que deslizasse por Gaia abaixo, sorrisse do alto da ponte D. Luís às luzes enevoadas da Ribeira e acabasse um bocadito imóvel na paragem da Praça da Batalha, à espera que um último passageiro começasse a acordar de novo.
A mãe iria até à Travessa de Passos Manuel, apanhar a Cabanelas até Amarante ? mais de duas horas de viagem sem sono nem vontade de estar acordada sobre as curvas de gelo misturado com gasóleo e a voz estridente da que se apeava em Penafiel, mas não parava com o dinheiro que tinha gasto para fazer o flanelógrafo, tanto para as madeiras, para as cartolinas e para os moldes das letras e de umas estrelitas para enfeitar as janelas que mais 15 dias e era Natal, que isto de se passar a vida a pagar do bolso para o emprego pode lá ser?
Quando a mãe chegava a Amarante, atravessava a ponte já o Sol escorregava pelo escuro do Marão e lá estavam o padeiro e a mulher à espera, sempre à espera da última levada até Travanca, lá no monte, onde as casas eram todas de pedras escurecidas a frio e fumo de lareira e os caminhos de lama debruada a neve. Deixava a furgoneta, o aroma divino a pão, calçava as galochas e atravessava a aldeia até à igreja, ao lado a escola, oito meninos a chegarem com pão, sem dentes, narizes sempre a acender e a apagar nos buracos das mangas das camisolas.
(A manjedoura podia ser por ali. Havia cabras que saltavam entre o recreio e o adro da igreja; havia mesmo - desenhado em restos de cartão e decorado com bugalhos e folhas compridas dos primeiros eucaliptos a secarem o ribeiro no Verão - um anjo que poderia dar a boa nova de um recém-nascido. Se ali germinasse um Menino havia de prosperar e, como a mãe, tornar-se forte e cheio de sabedoria. Iriam os dois ao Templo, para que lhes avaliassem o desempenho; e mesmo que os Doutores os quisessem convencer do contrário, ensinar-lhes-iam que aquela era a casa do Pai. E que se, como tantos outros, já tinham transformado a água das talhas em vinho e inclusive levantado paralíticos - sabiam já reconhecer os bons profetas pelos frutos que dão.)
Aquela mãe, sozinha, fechou a porta da escola pelas 15h00. Foi em cima de um jumentinho que um menino conduziu durante vinte minutos até à estrada de Mesão Frio. Apanhou a camioneta e em Amarante ainda passou pela delegação escolar para assinar os papéis do vencimento, sem ter nenhum Zaqueu cobrador de impostos que a compensasse por tanto esforço.
A Mãe apanhou a carreira para o Porto às seis da noite. Aprendia todos os dias que, como de uma frase se chega a uma palavra e desta a uma sílaba, também cada grão de mostarda, quase invisível, cresceria e daria uma árvore onde os sonhos de tantos meninos viriam ancorar. Entre o jantar, o ver uns trabalhinhos, o beijo ao filho e o adormecer não foi tempo nenhum. Voltaria no dia seguinte, para não perder o rebanho, para acalentar o cordeiro que mais se perdesse.
Faltavam ainda alguns anos para que houvesse auto-estrada e, apesar das estrelas, os Reis Magos nunca chegaram a tempo. Deixaram o ouro, o incenso e a mirra (e a pólvora?!) - este tempo todo! - para serem entregues como recompensa, talvez a outras galochas? ou a outros sapatinhos de cristal que não são desta história - prémios: nacional de professores, mérito de carreira, mérito de inovação e até mérito de liderança (imagine-se!).
E o poeta do Marão que trouxe sempre a telúrica Torga cravada no peito virou-se de costas no seu leito último, a lembrar-se da dignidade com que foi capaz de recusar tantos galardões? E rejeitando a figura de qualquer Cristo, lá Lhe falou meadas de horas nos vendilhões do Templo, do perigo dos galos a cantar por tantas mentiras e dos traidores por 30 moedas? e como era isso dos espinhos e da cruz no monte Gólgota? E onde é que haveria um José de Arimateia para levar o corpo desta mulher ?
Podia ser uma história de qualquer professor (a) em Portugal.
Podia ser uma história de Natal.

1) Termo mais usado no norte do país, para botas de borracha, para a chuva ; « Espécie de calçado de cabedal, com rasto de madeira ou de borracha, para preservar da humidade» (Machado, J. Pedro (1991) Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Tomo III. Lisboa. Círculo de Leitores)


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 173
Ano 16, Dezembro 2007

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

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