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Para além da morte da política?
A política tem, para muitas pessoas, um certo travo a palavrão. A política é o lugar da discussão, das dissensões, da oposição, ? tudo tão contrário a um mundo (desejavelmente?) perfeito em que as decisões fossem fundadas em critérios racionais que dariam origem a evidentes consensos. Ora, como diria Ferlinghetti, "mesmo no céu não se canta constantemente" ? e este discurso anti-político tem significativos riscos para a democracia que só sobrevive porque há lugar para o reconhecimento e a expressão pública da diversidade e do pluralismo. É por isso que a desvalorização da política comporta um risco intenso em termos da educação das novas gerações, educação essa que deveria ser uma responsabilidade assumida por todos os adultos e instituições sociais ? desde os partidos políticos, passando pelos média até, naturalmente, às escolas ? e não uma preocupação "arrumada" numa qualquer área curricular.
No entanto, não quer isto dizer que as escolas não sejam contextos nucleares de aprendizagem (da) política, quer este projecto seja (ou não) explícita e intencionalmente assumido como tal. Desde logo, porque são espaços onde inevitavelmente interagem pessoas diferentes ? e a política, lembra Arendt, tende a emergir no espaço entre pessoas que se envolvem na resolução de problemas comuns. Depois, porque a qualidade do envolvimento cívico e político, nas suas diversas formas (mais ou menos participadas, mais ou menos episódicas, ?) e em diferentes contextos (associações juvenis ou culturais ou ambientais ou (?), parece depender de factores como a escolaridade e a crença na possibilidade de fazer a diferença. Aqui, a escolaridade é também o sinal de uma literacia que remete para uma capacidade global de "ler" e "interpretar" o mundo em diversos domínios. Por exemplo, e tenho vindo há anos a insistir neste ponto, um professor de ciências naturais faz mais pela literacia política dos seus alunos se apresentar o conhecimento científico, não como um facto inquestionável, mas sim como o produto de um processo de inquirição, sempre inacabado e tentativo, do que se discursar sobre a importância das eleições. Isto, porque "a ciência" é, hoje em dia, frequentemente usada como "argumento final e decisivo" de decisões que são, na sua essência, políticas ? como foi óbvio nos ainda recentes debates a propósito da interrupção voluntária da gravidez. Finalmente, porque a vivência da escola, tanto dentro quanto fora dos seus muros, na sua relação com a comunidade envolvente, propicia um conjunto de oportunidades para aprender sobre o poder, a negociação, a discussão e a participação ? competências essenciais para o exercício de múltiplos papéis na comunidade, incluindo o papel de cidadã/o.
Mas não quero aqui desvalorizar o papel dos dispositivos curriculares que estão actualmente em vigor com o objectivo explícito de promover a cidadania dos alunos, como é o caso da Formação Cívica e da Área de Projecto. Efectivamente, aqueles de nós que acompanham o processo de decisão e implementação de dispositivos curriculares nesta área desde a Reforma Curricular de 1989, reconhecem as vantagens destas áreas curriculares não disciplinares, por duas razões principais. Em primeiro lugar, pela universalidade, na medida em que abrangem todos os alunos do ensino básico. Em segundo lugar, porque a decisão de não exigir uma formação específica aos professores envolvidos permitiu uma disseminação que não fora possível com os dispositivos anteriores. No entanto, esta opção também tem riscos que é essencial reconhecer. Desde logo, definir uma área para abordar as questões da educação para a cidadania pode corresponder a delimitar e acantonar essas questões; na medida em que há professores responsáveis por essa área pode gerar-se a ideia de que são os responsáveis exclusivos ou principais por essa tarefa. Depois, porque a ausência de uma formação específica e intensiva pode dificultar a operacionalização de objectivos, conteúdos e competências a promover nessas áreas; aqui, há claramente um deficit de informação, pela ausência de estudos sistemáticos acerca da implementação da Formação Cívica e da Área de Projecto e porque são relativamente escassas as descrições de experiências do terreno. Mas os poucos estudos que já vão aparecendo indiciam uma ênfase em questões mais interpessoais e alguma ausência de política nestas áreas curriculares.
Corro certamente o risco de estar a injustiçar as muitas professoras e professores que fazem da promoção de uma consciência cívica e política, da discussão de visões alternativas do mundo, do envolvimento dos alunos e das alunas em decisões colectivas e do estímulo à sua participação na vida das suas comunidades uma componente importante do seu quotidiano na escola. Mas estou seguramente à espera do dia em que estes profissionais da educação assumam o protagonismo na descrição das suas experiências que revele como as escolas portuguesas são ainda locais onde a nobreza da política se vive todos os dias.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Isabel Menezes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Isabel Menezes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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