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A ampulheta
Este textinho é dedicado àqueles que clamam por mais e mais exames, aos que confundem mais exames com maior rigor na avaliação. Voltaram a atacar e a imprensa deu cobertura aos disparates. Entendem que devia haver mais provas no 4º ou no 6º ano" e que "os exames nacionais desapareceram e ficámos sem saber o estado real do ensino". Quanta ingenuidade! Em algo estarei de acordo com os adeptos dos exames: dever-se-á dar mais atenção e pôr mais exigência na formação e na admissão de professores; e repudiar a ideia de que se pode aprender sem esforço, memória, ou apreensão de automatismos. Mas acrescentaria que fariam melhor se defendessem a prática de uma avaliação rigorosa, que dispensasse as escolas dos inúteis e caros rituais de exame.
Se não desistem da sua cruzada de regresso à mesmice de onde nunca saímos, eu retomo o assunto. Nos últimos vinte anos, foram muitos os textos que lhe dediquei. Neles demonstrei a inutilidade dos exames. Fá-lo-ei, desta vez, pelo lado da psicologia? e do bom senso.
A Adélia sabia a matéria na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas e repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse. Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros: decorou-os, um por um. Mas acabou derrotada por uma... ampulheta.
Abdicou da novela das sete e ? supremo sacrifício! ? o namorado foi-se, ao cabo da segunda semana de clausura. Quem diria que se deixaria intimidar por um diabólico aparelho de medir o tempo? Ingloriamente, a presença de uma ampulheta na sala de exame deitou por terra todo o investimento.
Iniciada a prova e anunciado o tempo limite para a sua realização, a Adélia fixou um olhar de hipnotizada na areia que caía, caía, caía.... Bloqueou-se a mente, tolheram-se os movimentos. As folhas da prova ficaram em branco e humedecidas por lágrimas.
Decorridos alguns dias sobre o drama, sobreveio uma desmesurada sudação, crises de choro, incontinência urinária. Nada que a competência dos médicos e alguns sedativos não conseguisse dissipar... O que não é possível disfarçar é a inutilidade dos exames. E será preciso alertar para efeitos colaterais e perversões.
Enquanto a Adélia me descrevia o seu drama, eu escutava-a atentamente, mas evocava outras situações absurdas em que as escolas de antigamente eram pródigas.
Nos idos de sessenta, conheci um professor que distribuía bofetadas pelas razões mais comezinhas. Mas do que ele gostava mesmo era da cruel "chamada ao quadro". Quando o "Senhor Engenheiro" (não permitia que o tratassem por professor, e nisso estava certo) sadicamente acariciava a caderneta dos alunos e a abria numa página ao acaso, um silêncio tumular prenunciava a tormenta ? quem seria a vítima do dia? O suspense era quebrado, quando um nome era pronunciado e muitos suspiros de alívio se ouviam em surdina.
"Fulano de tal! Ao quadro! Já!" ? E o fulano lá ia, como ovelha para a degola.
Eu fazia parte do grupo dos afortunados. Apenas fui contemplado com duas "chamadas ao quadro". Safei-me sem bofetadas nem pontapés. Mas o Dimas fazia parte do grupo dos mártires. Já havia sido contemplado com monumentais sovas, que lhe deterioraram a auto-estima de jovem com quinze anos feitos.
Naquele dia, o "Engenheiro" estava mais carrancudo que o habitual. As tábuas do estrado rangeram de um modo mais tenebroso que o habitual. Os momentos que precederam o momento fatal pareceram ainda mais longos que o habitual. O "Engenheiro" apoiou os cotovelos na secretária e os seus dedos passearam pelas páginas da caderneta. A sua voz saiu mais cavernosa que o habitual. Mas o que era habitual não aconteceu...
O Dimas escutou o seu nome, mas não se levantou. Ouvimos um gotejar semelhante ao da chuva no telhado, mas, lá fora, estava o dia estava solarengo. Era o Dimas, que urinava sentado.
Antigamente, as "chamadas ao quadro", à semelhança de outros rituais e instrumentos de tortura a que dão o nome de prova e que nada provam, reforçavam o exercício de uma violência explícita muito ao estilo dos tempos de ditadura. Hoje, a violência é apenas simbólica, mas não estaremos muito longe do espírito de antanho.
Um exame pouco ou mesmo nada avalia. Como outros absurdos em que a Escola é fértil, não coloca apenas jovens psicologicamente mais frágeis à beira de um ataque de nervos. Conforme está concebido, não é apenas responsável por crises de sudação, choro e incontinência urinária. Mais que um potencial descontrolador de esfíncteres ? um exame é, em si mesmo, uma porcaria (eu ia escrever "merda", mas optei pelo eufemismo, para não ferir sensibilidades).

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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