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Educação e trabalho ou quando a racionalidade se torna inerte
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara".
A alusão a esta epígrafe, cunhada por Saramago na abertura do seu Ensaio sobre a Cegueira, pode ser relacionada a determinadas abordagens sobre a temática educação e trabalho. Mais ainda, quando se considera as palavras de Netrovski a respeito da obra: "Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado". Entendamo-nos.
Diversas focagens acerca da relação educação e trabalho têm olhado os fenómenos desse campo, mas não os têm visto, e quando os vêem, não reparam, tornando, assim, a racionalidade prisioneira da inércia, quando, na verdade, esta, analiticamente, à maneira dialéctica, é, de per si, um permanente movimento-devir de autosuperação. Várias são as cegueiras dessas focagens, e aqui cito apenas duas.
A primeira concerne à própria noção de trabalho. Em geral, este tem sido referido como um fenómeno uno, entendido como emprego, assalariamento, subordinado à lógica do sistema produtor de mercadorias. Ele, no entanto, é mais do que isto. É um fenómeno de dupla dimensão: De uma parte, é dispêndio de força física e intelectual, regido por uma determinada relação salarial; de outra, tem-se a sua dimensão genérica, momento de (re)encontro com a natureza, como elemento essencial no universo da sociabilidade humana. Não é à-toa que, em sua sociologia da vida quotidiana, Agnes Heller, ao realçar que o trabalho tem que ser apreendido como execução de um trabalho que é parte do dia-a-dia e como actividade de trabalho, no sentido de objectivação directamente genérica, não é à-toa, dizia, que, em língua inglesa, ela utiliza as palavras work e labour. A primeira é empregue para nomear a dimensão genérico-social que transcende a vida quotidiana, gerando valores de uso; a segunda expressa a execução de actividades diárias, que, sob o assalariamento, assumem uma forma estranhada, fetichizada, alienada.
Importa, portanto, tendo em conta a dimensão genérica, sublinhar, com tintas lukacsianas, que a essência ontológica do trabalho tem um carácter intermediário. Trata-se de uma inter-relação entre o ser humano (sociedade) e a natureza, seja inorgânica ou orgânica, inter-relação que distingue a passagem, na pessoa que trabalha, do ser meramente biológico àquele tornado social. Assim, o trabalho pode ser considerado como protoforma do ser social. O fato de, no trabalho, se realizar uma posição teleológica configura-o como uma experiência elementar da vida quotidiana. Quer dizer, a génese do ser social, sua separação frente à sua própria base originária, e também o seu vir-a-ser, estão fundadas no trabalho, isto é, na contínua realização de posições teleológicas.
A segunda cegueira refere-se à démarche "teórico-empírica". Ou seja, determinadas abordagens têm sido desenvolvidas sem romper o véu das retóricas impressionistas em torno da relação educação e trabalho. Outras, por vezes, perdem-se num abstracionismo micro (sem sustentação empírica), descuidando dos encadeamentos que tornam os objectos partes de totalidades complexas. No primeiro caso, tem-se o êxtase perante o mundo da pseudoconcreticidade, não se considerando que "a coisa em si" não se manifesta imediatamente ao ser humano e que, para a sua compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. No segundo caso, nota-se um desprezo à história, como processo, em função da primazia atribuída a incursões que, atadas à mera abstracção, não captam a labuta dos sujeitos em seus contextos.
Portanto, como visto, perante a relação educação e trabalho, a racionalidade se tem tornado inerte. Poder-se-ia invocar outros argumentos neste sentido, mas, convenhamos, seria repisar o já dito, pois alguns são mais velhos do que a Sé de Braga. Além do mais, para as pessoas de mente versada nos jogos do espírito, fica sempre subentendido que as teses são propostas cun grano salis.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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