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Novas Tecnologias e Educação (II): a reflexividade dos Cree e dos Amish

A escrita chegou em meados do século XIX aos Cree (originalmente caçadores-recolectores do círculo polar árctico) levada pelo missionário linguista James Evans que inventou um silabário fácil de aprender dado o seu reduzido número símbolos (12 na sua variante mais simples). Os Cree acolheram com entusiasmo a novidade e passaram a trocar mensagens escritas e cartas entre si, adaptando a invenção às suas próprias finalidades e propósitos. Em grande medida os Cree tornaram-se uma sociedade letrada, mas não escolarizada nem tão pouco desenvolveram uma tradição literária assinalável. A escrita permitiu-lhes, isso sim, desenvolver formas de comunicação à distância (crucial dada a enorme dispersão geográfica do seu povoamento), manter registos contabilísticos da sua actividade comercial de venda de peles aos colonos europeus e resolver problemas de comunicação entre si: assuntos que, culturalmente, não poderiam ser tratados face-a-face (por exemplo, pedir algo directamente a outra pessoa, fazer um convite ou dar uma ordem) passaram a ser tratados por escrito. Os Amish são conhecidos pelo seu estilo de vida cheio de interditos tecnológicos. Certas fontes de energia (como a electricidade), meios de transporte e de trabalho (como automóveis e tractores) e meios de comunicação (telefone, rádio, televisão, fotografia, computadores) são evitados, estritamente regulados ou mesmo proibidos no interior das casas e nas comunidades. O caso do telefone é particularmente elucidativo: quando, em 1879, o telefone chegou aos aldeamentos Amish - nos Estados Unidos ? a novidade expandiu-se rapidamente até que, em 1909, as discórdias e discussões sobre a sua utilização levaram os líderes das comunidades a proibi-lo dentro das casas. Declarado contrário ao princípio de separação do mundo não Amish o aparelho foi banido do interior dos lares e tolerado apenas se instalado fora de casa, nunca a menos de 50 metros. Outro exemplo tem a ver com o uso dos computadores: embora não possam nem devam usá-los, é possível encontrar na Internet milhares de páginas com anúncios de negócios que são propriedade de famílias amish, sítios sobre a "cultura" e "tradições" Amish", etc. Estes interditos tecnológicos tornam o estilo de vida dos Amish aparentemente muito diferente das restantes pessoas das sociedades onde vivem. É no entanto incorrecto pensar que os Amish vivem parados no tempo, isolados da restante sociedade ou que são radicalmente tecnofóbicos. Embora desejem e, de facto consigam, viver apartados do mundo não-Amish, isso não significa no entanto que os Amish vivam isolados. Na verdade mantêm e até certo ponto dependem de relações vicinais e de trocas comerciais no contexto das sociedades onde vivem. As interdições relativas a fontes de energia, meios de transporte e de comunicação podem variar de comunidade para comunidade (não há uma autoridade central, cada comunidade é relativamente autónoma) e têm sido reformuladas e adaptadas ao longo do tempo. Estamos perante um processo histórico particularmente interessante de reorganização ou domesticação da tecnologia: o telefone, bem como a rádio, a televisão ou o computador são perigosos porque trazem para dentro de casa o mundo do qual os Amish querem viver apartados. Em suma, as crenças religiosas dos Amish desempenham um papel muito importante no modo como apropriam, ou ao contrário rejeitam, determinadas tecnologias e fontes de energia. (1)
Gostava de usar estes dois exemplos históricos de processos de adopção e rejeição da tecnologia (admitindo, com Jack Goody, que a escrita é uma tecnologia da mente) para reflectir sobre a forma como, contemporaneamente, nos situamos face à tecnologia e aos discursos que sobre ela são produzidos. A minha sugestão é muito simples: em ambos os casos podemos observar atitudes diferentes, mão não necessariamente antagónicas, relativamente à tecnologia: os Cree adaptaram a escrita ás suas necessidades mas resistiram em grande medida ás intenções dos missionários de os cristianizar e de os escolarizar; por seu lado os Amish constituem um exemplo muito particular e relativamente excepcional dentro do que são os padrões gerais que governam as atitudes face às tecnologias no mundo contemporâneo. Na maior parte dos casos somos, no tocante ao uso das tecnologias, muito menos reflexivos do que os Amish e os Cree: tendemos a considerá-las parte integrante do nosso mundo e a não questionar o seu uso e aplicações. Seymour Papert, autor de um livro em boa hora traduzido entre nós há alguns anos (A família em rede, Relógio d'Água) afirma a dado passo: "Na realidade, o que está a ser feito na escola é uma mascarada evidente do que poderia ser feito com o computador. Portanto, não é raro dar por mim a discutir acaloradamente com pessoas que pensam concordar comigo no que diz respeito à importância da tecnologia na educação, e que revelam surpresa ao descobrirem que reajo ruidosamente à forma como as coisas estão a ser feitas" (p.43). Termino com uma pequena provocação: nas famílias e nas escolas, particularmente no que ao uso dos computadores diz respeito, deveríamos ser capazes de adoptar a reflexividade dos Cree e os Amish, adoptando, adaptando ou mesmo recusando certos usos da tecnologia.

1) Um relato sobre a introdução da escrita entre os Cree pode ser encontrado em Bennntt & Berry 1998 "A escrita silábica dos Crees" in D. Olson & N. Torrance Cultura escrita e oralidade, S. Paulo: Walter Lelis Sequeira Ed., p. 101-116; sobre a relação dos Amish com a tecnologia e em particular o telefone ver Zimmerman, U. 1994 "The Amish and the telephone" in Roger Silverstone & Eric Hirsh Consuming Technologies. Media and Infromation in Domestic Spaces, Routledge, p. 183-194.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Filipe Reis
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Filipe Reis
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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