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Professores e crianças como sujeitos pós-coloniais

Essa reflexão pretende buscar chaves de leitura para a compreensão de relações cotidianas que tomam cena nos contextos educativos, especificamente a escola pública brasileira, que atende a crianças das classes populares. São oriundas de dois espaços de formação de professores: a formação em serviço, que é oferecida pelas redes de ensino aos professores e professoras que já estão formados na universidade, e a formação inicial, aquela que acontece nos cursos de licenciaturas na graduação. O texto tenta trazer em relevo dois momentos desses espaços de formação: dois instantâneos onde pudemos pensar as condições do pensamento desses jovens professores e professoras sobre a questão das crianças das classes populares.
Como vivemos em uma cultura que tem como discurso fundador as relações pós-coloniais, intentamos um efeito que Benjamin e Brecht já propuseram: suspender por um instante o fluxo do cotidiano e, sob a ação de um choc, penetrar nas formas constituídas do pensar e delas imergir com chaves de leitura que possam nos ajudar a repensar.

Primeira experiência: os licenciados e suas representações das crianças das classes populares.

Isso que a nós muitas vezes parece já o óbvio, surpreende que seja grand news a meus estudantes. Quando trato das influências da Psicologia na Educação, começo sempre o curso versando sobre a imensa responsabilidade dessa disciplina científica na construção da forma da instituição escolar moderna, expressa em cada pequeno detalhe por vezes negligenciado. As uniformizações, as técnicas de isenção da responsabilidade dos sujeitos nas hierarquizações e classificações ? que acabam por permitir ou não a alguns o acesso à cultura dominante ? a forma encadeada e progressiva do currículo, a rede invisível dos poderes disciplinares, só para falar de alguns temas. A crítica é recebida com surpresa pelos jovens professores que estão se licenciando. Entender que a forma do pensar que nos é possível foi construída, forjada no seio das relações sociais e históricas, é uma chave de leitura que muitos deles desconheciam. Chaves de leitura abrem uma correnteza de idéias represadas.
Um lugar de pensar se fez com um trabalho de leitura de fotografias de Sebastião Salgado, retratando crianças. Seja do álbum Terra ou do Êxodos, as crianças fotografadas são crianças pobres, das classes populares, de culturas e comunidades excluídas, e estão sujas-do-mundo. Peço aos estudantes que leiam as fotografias e que discutam coletivamente quem são essas pessoas. Eles freqüentemente expressam estereótipos das mais diferentes formas, localizando as crianças sempre no fora: fora do tempo, fora da urbanidade, fora da ciência, fora da tecnologia, fora da infância. São sempre tristes, perderam a infância, são mais velhos ou velhas que as idades aparentes, têm seu gênero freqüentemente confundido. São trabalhadores precoces, não vão à escola e quando vão, nela não se saem bem. Não possuem projetos de futuro, estão presos num presente fora da história. Então, depois que eles narram e discutem todas essas representações, eu lhes devolvo o discurso: repito para eles o que disseram das fotografias. Nada faço além de repetir para eles o que haviam dito. Chave de leitura: as comportas do pensamento se abrem e os estudantes passam a discutir sobre as condições de seus pensamentos e suas concepções.

Segunda experiência: as professoras da educação infantil de uma rede pública de ensino

Desenvolvemos uma pesquisa com 156 professoras que atuam como docentes em creches e pré-escolas em uma rede pública de ensino brasileira. Na primeira parte da pesquisa, solicitámos às professoras que representassem, por meio de um desenho, como percebiam a criança de 0 a 6 anos de idade. Como a representação hegemônica de criança emergente nesta parte da pesquisa foi a de uma criança branca e pertencente a camadas médias da população, pensamos em uma segunda tarefa. Na segunda parte, após a leitura de um conto intitulado Negrinha, em que Monteiro Lobato narra a história de uma menina negra escrava, pediu-se às professoras que reescrevessem o final da história, tomando o ponto de vista da menina negra. Foram produzidos 145 textos que em sua análise evidenciaram representações da criança negra como dependente de outros sujeitos brancos, que lhe permitem brincar, ter acesso a bens culturais e emancipar-se. A criança negra e oprimida, descrita nos textos das professoras em termos de anomia, tinha sua passagem autorizada para a infância somente a partir do encontro com o branco, em diversos papéis ? marido, patrão, padre, famílias bondosas.
Considerando que em ambas as experiências trata-se das representações de professores e professoras, sujeitos incumbidos da tarefa de promover a autonomia nas crianças das classes populares que a elas são confiadas na escola, pensamos estar diante de uma grande questão. A visão da criança que foi revelada nas duas tarefas nos exigem uma discussão sobre a escola ainda como cenário de relações pós-coloniais. Há uma imagem de criança universalizada, que não corresponde à criança que é sujeito da escolarização. Entendendo a escola como contexto de formação de sociabilidades a partir da construção de subjetividades e identidades culturais, e assumindo que o adulto tem um papel fundamental na organização das experiências neste contexto, nos preocupam os índices revelados de estereótipos sobre as crianças de diferentes pertenças étnico-culturais e as possíveis sociabilidades formativas decorrentes destas visões das professoras. Mais que nos surpreender com esses resultados, precisamos encontrar chaves-de-leitura que possam fazer com que os pensamentos se voltem sobre si e se repensem, se reinventem, criando outras formas para o pensar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Marisol Barenco
GRUPALFA e Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Marisol Barenco
GRUPALFA e Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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