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"Ministério da Educação tem induzido na sociedade portuguesa um sentimento negativo acerca dos professores"

Manuela Esteves, em entrevista à Página, considera que a confiança no trabalho dos professores está "fortemente abalada"

Licenciada em História e doutorada em Ciências da Educação na área de especialização de Formação de Professores, Manuela Esteves é professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (FPCE-UL), onde lecciona disciplinas aos níveis de licenciatura e mestrado (Modelos de Formação e Análise de Práticas de Formação).
É também responsável pela orientação de estágios profissionais da licenciatura e orientadora de seminários de integração profissional. Colabora igualmente em cursos de estudos avançados visando o doutoramento e na orientação de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento.
Tem produzido trabalhos de investigação sobre formação de professores, em particular nos campos da análise de necessidades de formação e de estratégias de formação, área sobre a qual já publicou numerosos artigos em revistas da especialidade nacionais e estrangeiras, sendo autora de diversos livros sobre esta mesma temática.
Paralelamente à sua actividade docente, é membro da Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação sedeada na FPCE-UL, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e membro do Conselho Nacional da Federação Nacional dos Professores e dos corpos gerentes do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.
Nesta entrevista, Manuela Esteves faz um breve balanço da evolução das últimas três décadas do sistema educativo português, critica o excessivo peso da tradição relativamente aos aspectos inovadores ? que em sua opinião radica, entre outros motivos, nos actuais modelos de formação de professores ? e considera que o Ministério da Educação tem dado sinais negativos de confiança em relação ao trabalho dos professores.

Que balanço faz da evolução do sistema educativo português nos últimos trinta anos?

O sistema educativo português alterou-se profundamente nos últimos trinta anos e julgo que uma boa parte das mudanças introduzidas podem ser consideradas positivas. Entre as mais significativas destacaria a democratização do acesso ao ensino, resultado quer do esforço empreendido pelo Estado neste domínio quer das crescentes expectativas sociais em relação à escola.
Este crescimento do sistema traduziu-se, por sua vez, no aumento do número de alunos presentes no ensino secundário e dos candidatos ao ensino superior. Independentemente dos juízos de valor que se possa fazer em relação à qualidade deste último, particularmente quando se compara o ensino superior público e particular, o facto é que a taxa de frequência universitária é hoje cerca de dez vezes superior relativamente há três décadas.
Outro aspecto incontornável desta evolução foi a mudança do modelo de gestão das escolas, que passou de um sistema gerido de forma autoritária para um sistema democrático, onde estão representados professores, alunos e encarregados de educação, que alterou profundamente as relações humanas e de trabalho vividas no interior das escolas.
Em terceiro lugar destacaria o modo como a política educativa se foi tornando gradualmente um objecto de preocupação alargada da sociedade portuguesa, nomeadamente dos próprios actores do sistema educativo, traduzida na capacidade de intervenção e de organização de professores, pais e estudantes, estes últimos com um movimento umas vezes mais forte outras mais desarticulado, mas marcado por uma intervenção regular em relação aos problemas que mais os preocupam.

Que aspectos considera não terem sido conseguidos?

Uma das questões que mais me preocupa é a não democratização do sucesso educativo, à qual o sistema ainda não conseguiu dar uma resposta capaz. Apesar de o abandono escolar no ensino básico ter sido relativamente debelado, continuamos a manter taxas muito elevadas de insucesso escolar, quer patente, traduzida no grande número de retenções, quer latente, com muitos alunos que, embora transitando de ano, não conseguem ter um sucesso educativo credível.
Uma segunda preocupação prende-se com a fraca taxa de frequência e de conclusão do ensino secundário, resultante das dificuldades que muitos alunos sentem em concluir a escolaridade básica e de problemas ligados com a própria organização dos currículos escolares. Seja por estas e por outras razões, o facto é que o ensino secundário representa um fracasso para um número demasiado elevado de alunos. Tendo em conta que a educação e a formação são fundamentais para o desenvolvimento do país, não podemos continuar a admitir a formação das jovens gerações marcadas por baixas qualificações escolares.
Outro aspecto que também considero inquietante é a relação entre a formação escolar e a inserção dos alunos na sociedade e no mercado de trabalho. A escola assumiu-se, e bem, não apenas como um local de instrução mas de formação integral do aluno, com o objectivo de prepará-lo tanto para a vida activa como para a construção da democracia, mas creio que a este nível existe também algum insucesso a assinalar. Apesar das sucessivas reformas curriculares, os currículos escolares ainda mostram dificuldades em equilibrar, tanto quanto possível, este conjunto de vertentes.
Finalmente, não posso deixar de assinalar alguma apreensão relativamente às dificuldades sentidas pelo sistema educativo em introduzir mudanças e inovações significativas. Mais uma vez, o balanço das sucessivas reformas mostra-nos que o peso da tradição se tem mantido, regra geral, mais forte do que o peso da inovação. Evidentemente que existem bons exemplos e algumas escolas têm conseguido atingir patamares interessantes neste campo, mas olhado o conjunto prevalece, de facto, um peso excessivo da tradição.

Não considera que neste balanço haverá lugar para a crescente degradação da relação entre a administração e a classe?

Na minha opinião, um dos factores obrigatórios para a existência de um sistema educativo que queira apostar na mudança e na inovação é o elevado grau da confiança que deve existir entre os diversos actores do sistema. E nos últimos dois anos essa confiança e a expectativa positiva que deveria existir em relação à escola e ao trabalho dos professores está, de facto, fortemente abalada. E a actual situação não augura nada de bom em relação ao futuro próximo.

Como vê a recente revisão do Estatuto da Carreira Docente à luz dessa análise?

O processo de revisão do Estatuto da Carreira Docente é um sinal claro de que está em curso uma operação de alteração profunda do modo como a administração encara o papel dos professores do ensino público. Neste contexto, os sinais dados pela tutela têm sido lidos pelos professores como uma crítica permanente à qualidade do seu trabalho.

A sociedade portuguesa parece estar em geral convencida pelos argumentos do ME. Não concorda que a este processo não é alheia uma certa manipulação da opinião pública?

Uma coisa são as impressões que vamos colhendo e as generalidades que construímos a partir delas, outra é tentar perceber através de um método rigoroso de que forma evoluiu a representação da sociedade portuguesa em relação à escola e aos professores, cujo último estudo, se não me engano, foi realizado em 1995.
Paralelamente, existe o poder de criação de opinião pública, em maior ou menor grau, exercido pelos detentores de cargos políticos. E, de facto, nos últimos dois anos, o ME tem feito o suficiente para induzir na sociedade portuguesa um sentimento negativo acerca dos professores.

Pensa que a argumentação avançada pelo ME para reformular o Estatuto da Carreira Docente é essencialmente político ou económico?

Legitimar esta decisão implica necessariamente querer poupar dinheiro. Face à situação das finanças portuguesas, esta foi a primeira prioridade. E na relação directa desta prioridade aparece um método de avaliação que permite seleccionar qual é o terço do número de professores que pode aspirar a uma carreira completa.
O principal factor que está na origem desta decisão não é o de melhorar as escolas, tornar a carreira mais exigente e premiar os melhores professores, mas antes de mais de procurar resposta para uma questão básica na esfera da decisão política actual: de que forma tornar o sistema educativo público mais barato? Preocupação, aliás, que se tem vindo a estender a outros sistemas educativos na Europa.

Peso da tradição no sistema educativo continua a sobrepor-se à inovação

Referiu há pouco que o peso da tradição no sistema educativo se sobrepõe à mudança e à inovação. Porque razão pensa que esta relação pende a favor da primeira?

Existem variadas razões que concorrem para esta situação, nomeadamente o facto de a gestão do sistema educativo estar ainda fortemente centralizado e ter habituado os professores a dependerem muito de normativas emanadas pelo poder político central?

Analisando concretamente o processo de autonomia: terão sido as escolas e os professores a não conseguirem tirar maior partido deste conceito ou, tal como refere, o seu alcance terá sido limitado pela acção centralizadora da administração educativa?

Eu creio que, por vezes, o ministério parece não compreender que para mudar as atitudes e as práticas de um grupo profissional tão numeroso e heterogéneo como é o dos profissionais do ensino não basta dizer que a partir de um determinado momento os professores e as escolas passaram a usufruir dessa autonomia. Porque o exercício da autonomia exige determinadas condições.
Antes de mais que se compreenda qual é o alcance dela ? porque se trata da construção de um processo que não deve ser confundido com independência, mas sim de uma autonomia partilhada com a manutenção de um sistema de governo centralizado. Trata-se, enfim, de descobrir qual a margem de liberdade que é dada às escolas.
E a este nível os sinais são muitas vezes contraditórios. Ao mesmo tempo que o poder político diz que as escolas e os professores devem trabalhar com maior autonomia no sentido de encontrar as formas mais adequadas de atender às especificidades locais, toma muitas vezes decisões sobre os aspectos mais particulares da vida das escolas, não interpretando, como deveria, o próprio conceito que determinou. E desta forma reforça a ideia tradicional de que nas escolas não se pode fazer nada que não esteja devidamente regulamentado pelo poder central. Neste sentido, é indispensável que não só as escolas e os professores mas também a administração central aprofundem a noção de autonomia.
Finalmente, realizar a autonomia nas escolas implica responsabilidade e capacidade por parte dos professores e das escolas. E o papel da formação de professores joga aqui um papel decisivo.

Então, continuando na esteira com que iniciamos esta entrevista, que balanço faz do papel da formação inicial e contínua na construção desse perfil?

Também neste domínio se mantém um certo peso da tradição, e ao que tudo indica os resultados alcançados pelos sistemas de formação inicial e de formação contínua não têm sido adequados à promoção dos professores como profissionais autónomos.
Isto, porque a formação continua a estar sobretudo centrada nos papéis mais tradicionais do professor enquanto transmissor de conhecimentos e pouco num aspecto que é cada vez mais essencial: a capacidade de ser um co-construtor dos currículos escolares ? dividindo essa responsabilidade, naturalmente, com a administração central, que é quem define os currículos nacionais. E para isso se concretizar é necessário que cada profissional conheça diversos percursos de actuação e faça escolhas entre eles.

A actual organização curricular e programática do sistema educativo não limitará, de certa maneira, a assumpção desse papel? Por outro lado, não estará ela desajustada à população escolar? Será que não é possível pensar em percursos alternativos?

Eu creio que a revisão curricular desenhada para o ensino básico em 2001, que neste momento está a ser concretizada nas escolas, é, do ponto de vista formal, uma estrutura mais equilibrada relativamente aos anteriores planos de estudo. A questão coloca-se na dificuldade sentida pelos professores e pelas escolas em concretizar aquelas propostas curriculares.
Um bom exemplo é a criação das novas áreas curriculares não disciplinares, como o Estudo Acompanhado, a Área de Projecto ou a Educação para a Cidadania, que correspondem a novas possibilidades, mas que em muitos casos creio haver sinais evidentes de que não estão a ter o conteúdo e o grau de inovação que mereceriam. Estão a ser realizadas mecanicamente, de acordo com textos e manuais que as editoras rapidamente lançaram para o mercado, sendo patente a dificuldade de os professores assumirem o papel de construtor do currículo.
Mais uma vez creio que estas dificuldades advêm dos modelos de formação dos professores e dos modos de organização que persistem dentro das escolas. Porque estas três áreas que referi não têm, propositadamente, um programa nacional, devendo ser construídas em cada escola e no contexto de cada turma. Por outro lado, são também consequência do modo como as pessoas trabalham insuficientemente em equipa nas escolas, sobretudo porque a estrutura que está criada deixa o professor extremamente isolado e não aposta na possibilidade de inter-ajuda entre os profissionais.

Insistindo na possibilidade de criar percursos escolares alternativos: não será o currículo unificado uma forma de promover o insucesso?

Eu defendo a existência de um currículo único nos nove primeiros anos de escolaridade. Creio que a diferenciação curricular assente no modelo estrutural e não no modelo pedagógico tende a representar uma forma precoce de divisão dos alunos de acordo com as suas origens socioeconómicas e culturais.
A questão que se coloca é saber de que forma, no interior de um sistema curricular único, se consegue responder diferenciadamente a contextos e a capacidades de aprendizagem que exigem diferentes respostas. E aqui coloca-se a questão da diferenciação pedagógica. O problema é que se organiza com muita frequência o trabalho de ensino e as oportunidades de aprendizagem de formas única, como se todos os alunos fossem iguais e aprendessem todas da mesma forma.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

O processo de Bolonha na formação de professores

Num dos artigos que escreveu para a PÁGINA criticava o facto de a estrutura dos novos cursos de formação de professores decorrentes do processo de Bolonha ter sido delineada de "cima para baixo, praticamente imposta como um modelo", e de a opção por dois ciclos de três anos mais dois ser um "caso de engenharia financeira". Porquê esse comentário?

Na altura em que escrevi esse artigo ainda não se sabia de que forma iria ser pensado o mestrado. E creio que existem dois aspectos positivos na evolução recente sobre esta questão que me parecem importantes: a primeira, que os futuros mestrados possam corresponder a três anos de formação. Aquilo que até agora se chamava mestrado desapareceu para dar lugar a um modelo com três vias muito distintas, uma das quais passa pela realização de uma formação e de um estágio profissional.
O facto de esta possibilidade estar contemplada significa que o mestrado pode igualmente representar uma qualificação para o desempenho de uma profissão e não se limitar à condução de um trabalho de investigação como até agora acontecia.
Em segundo lugar, e no que diz respeito à formação de professores, aquilo que deve ficar claro é que no futuro não se poderá desempenhar a profissão sem a conclusão do mestrado e que a formação apenas se dá por concluída quando o candidato termina o mestrado - que deverá ser considerado idêntico aos mestrados integrados.
Espero que não esteja no horizonte do governo fazer com que as pessoas que se querem preparar para ser professores tenham de pagar pelo período de estudos de mestrado mais do que já pagam pela licenciatura. Porque houve uma distinção entre os casos em que o mestrado é indispensável para o desempenho de uma profissão daqueles em que a licenciatura é suficiente e o mestrado representa um aprofundamento da formação, mais da responsabilidade do próprio do que do sistema.
Tendo em conta que ninguém irá poder exercer a profissão docente sem concluir o mestrado, creio que desaparecerá a preocupação relativamente à possibilidade de o período correspondente a este período de formação, os dois últimos anos, sejam sustentados financeiramente pelos estudantes de maneira diferenciada relativamente à licenciatura.

Dizia também, e provavelmente esta será a questão mais significativa, que mais do que a estrutura importaria ter discutido outras questões que irão orientar no futuro a qualidade da formação?

Sim, no caso da formação de professores julgo que é ao nível das concepções e dos currículos da formação inicial que importaria aproveitar a oportunidade para criar programas mais adequados às actuais necessidades sentidas no funcionamento das escolas e no desempenho dos professores. A esse nível desconheço os resultados que estão a ser alcançados pelas diferentes universidades e politécnicos que estão neste momento a adequar os respectivos programas ao processo de Bolonha.
Se se tratar de uma mera adaptação cosmética, isto é, pegar em tudo o que se fazia e transportar mecanicamente para o novo sistema, provavelmente os resultados que serão obtidos, melhores ou piores, ficarão ao nível daquilo que se fazia no passado. Se, pelo contrário, este processo estiver a constituir uma oportunidade para repensar de raiz aquilo que se faz tentar perceber os resultados que têm sido alcançados em termos da qualidade da formação, das competências dos formandos e das reconfigurações do ponto de vista conceptual, creio que se poderá estar no bom caminho. No entanto, temo que, em muitos casos, aquilo que esteja a ser feito se resuma a uma adequação mecânica para o esquema novo.

Da discussão que tem decorrido sobre Bolonha parece-lhe que se está a dar mais relevância à questão da estrutura ou aos conteúdos científicos?

Na discussão pública poucas vezes se mencionou a qualidade da formação e a qualidade dos resultados. É evidente que o processo de Bolonha obriga todas as instituições de ensino superior a especificarem as competências que devem possuir os profissionais saídos das respectivas formações, mas a questão é saber de que modo se prepara, oferece e organiza a formação de modo que as competências desejadas sejam as alcançadas. Porque frequentemente deparamo-nos com situações em que há uma diferença excessivamente grande entre os fins que se pretendem atingir e os fins que de facto são atingidos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Manuela Esteves
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuela Esteves
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação da Univ. de Lisboa
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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