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Acolhimento Familiar: uma medida desconhecida

Protecção de jovens e crianças de risco

"Há demasiadas crianças institucionalizadas em Portugal." A ideia é consensual, mas segundo Paulo Delgado, investigador na área da Educação Social, a alternativa a esta prática está pouco explorada no sistema de protecção de crianças e jovens de risco português. Actualmente, existem cerca de seis mil crianças em famílias de acolhimento e quatro mil e quinhentas famílias. Institucionalizadas existem cerca de dez mil. Com poucos estudos e dados "nem sempre fiáveis", o investigador defende que "é fundamental olhar para a medida e fazer um balanço sobre as suas vantagens e desvantagens, para decidir o seu futuro". Algo que ele próprio tem feito enquanto investigador através de um estudo comparado que realizou sobre o acolhimento em famílias nas regiões de Glasgow (Escócia), Gondomar (Porto), Vigo e Pontevedra (Galiza). Recentemente, Paulo Delgado publicou o livro "Os Direitos da Criança ? Da participação à responsabilidade", pela Profedições.

A designação "crianças e jovens de risco" refere-se exactamente a quê?

Refere-se a uma criança que, por qualquer razão, que remeta para a sua família, terceiros, ou para o seu próprio comportamento, tenha o seu desenvolvimento psíquico, físico, emocional ou educativo ameaçado. No entanto, o risco tem de ser presente e actual. Não se pode falar em crianças ou jovens de risco quando há só o perigo de ficarem em risco. Esse perigo está sempre associado a algum tipo de mau trato: físico ou emocional.

Como vê o actual quadro legislativo, nomeadamente, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, de 1999?

Na altura em que foi feita era absolutamente necessária. O sistema que até então vigorava era extremamente proteccionista e de consequências nefastas porque misturava a área da delinquência com a da desprotecção social que era onde se inseriam a maior parte destas crianças em risco, nomeadamente as institucionalizadas. Portanto, a lei de 1999 foi nesse aspecto uma revolução. Actualmente, há aspectos que nos podemos interrogar se estarão a ser bem seguidos. Outros aspectos penso que deveriam ser alterados já!

Quais?

Aspectos que têm a ver com a regulamentação das medidas de protecção, a regulamentação das medidas que são cumpridas em meio natural de vida e a regulamentação da medida do acolhimento familiar. Temos no sistema cerca de seis mil crianças em famílias de acolhimento, cerca de quatro mil e quinhentas famílias de acolhimento e, apesar deste número ser significativo é uma medida desconhecida do sistema, ou seja, que não é estudada, nem promovida, nem discutida. Portanto, é fundamental olhar para a medida e fazer um balanço sobre as suas vantagens e desvantagens, para decidir o seu futuro.

No que toca à intervenção, as respostas existentes são as mais adequadas?

Há muito mais sensibilidade e consciência na intervenção, nesse sentido evoluiu-se muito. Existem Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em quase todos os concelhos do país. E há uma cultura crescente de denúncia e de atenção aos sinais de alerta que as crianças manifestam. No entanto, a intervenção entre as várias entidades com responsabilidades nesta área continua a ser muito desarticulada. Como há várias entidades a intervir, enquanto o caso é claramente da sua área ela vai respondendo. A partir do momento em que surja um caso mais ambíguo ou na fronteira da sua responsabilidade, automaticamente a resposta é dizer que a responsabilidade é do outro. Isso origina a omissões perigosas e sobreposição de intervenções, em que são pedidos os mesmos relatórios duas ou três vezes. E como estas instituições ? escolas, segurança social, comissões de protecção, tribunais ? têm em mãos muitos casos, mal surja a oportunidade de passar algum para outra, é como se o processo estivesse resolvido o que é um erro. Provavelmente passados alguns anos, os sinais de risco vão-se acentuar e o caso vai ser mais difícil de resolver e a responsabilidade não é só de uma instituição mas de todas.
Além disso, pensar que através de alterações no sistema deixará de haver crianças maltratadas é uma utopia. Porque normalmente quando surgem casos mais dramáticos, imediatamente se aponta o dedo ao sistema, é claro que ele deve ser avaliado, mas temos de ter consciência que há uma responsabilidade familiar e social que não é controlável apenas pelos instrumentos jurídicos ou de protecção.

Como refere no seu livro, a escola é responsável pela criança ou jovem, pelo menos durante nove anos, seis a sete horas por dia, neste sentido é de esperar mais da sua intervenção?

É preciso que as escolas, os professores e educadores estejam melhor informados sobre os sinais a que devem estar atentos e o que podem fazer. É que, por vezes, também há uma certa tendência da escola para a desresponsabilização, para delegar a intervenção em entidades especializadas. Mas sendo a escola uma instituição central no desenvolvimento das crianças se tender a empurrar os casos para outras instituições, mais tarde poderão vir a ter problemas mais graves.

Acolhimento em famílias

O acolhimento familiar é o tema do seu próximo livro [a ser editado pela Profedições]... Com base na investigação que tem desenvolvido nesta área qual a sua opinião sobre esta medida?

Há demasiadas crianças institucionalizadas em Portugal. Esta é uma ideia consensual e não é nenhuma novidade. No entanto, tarda a redução do número de crianças que vivem em instituições e, por isso, todas as alternativas a esta situação devem ser ponderadas. Entre elas, avulta a possibilidade de a criança ficar no seu meio natural de vida, que é a melhor quando é possível, se tiver de ser retirada à família surgem duas situações: a adopção ou o acolhimento familiar. Pelas conclusões que tenho retirado da minha investigação ? um estudo comparado sobre o acolhimento em famílias nas regiões de Glasgow (Escócia), Gondomar (Porto), Vigo e Pontevedra (Galiza) ? o acolhimento familiar é uma alternativa se tiver as condições necessárias para a sua concretização no terreno e que muitas crianças institucionalizadas poderiam beneficiar desta medida. O sistema galego é muito semelhante ao nosso, o escocês é completamente diferente. O livro que vai ser publicado pela Profedições, agora no início de 2007, diz respeito à segunda parte do estudo que analisa o acolhimento familiar no distrito do Porto, nomeadamente no concelho de Gondomar, que é o que tem um maior número de crianças colocadas em famílias de acolhimento.

Em que se distingue o sistema de acolhimento familiar escocês do português?

O sistema escocês tem uma longa tradição que aposta no acolhimento familiar e já há vários anos que esta é a medida preferencial quando as crianças têm de ser retiradas à família. Ou seja: na Escócia, verifica-se o inverso do que acontece em Portugal: dois terços das crianças vivem em famílias de acolhimento e apenas um terço estão em instituições. É um sistema especializado e bem organizado, onde há um grande trabalho em torno da medida e em que uma criança até aos 10 anos de idade, retirada da sua família biológica, em princípio tem lugar numa família de acolhimento. O que me parece muito interessante. Este estudo sobre o acolhimento familiar em Glasgow foi publicado na revista Infância e Juventude, do Instituto de Reinserção Social, número de Julho-Setembro. No próximo número será publicado o estudo do caso português. Espero que, a seu tempo, também possa publicar o estudo do sistema galego e depois o estudo comparado entre os três países (risos).

Curriculum Vitae

Paulo Delgado, é professor no curso de licenciatura e nas pós-graduações em Educação Social, da Universidade Portucalense. Encontra-se a desenvolver um projecto de investigação no âmbito de uma bolsa de Pós-Doutoramento, no Instituto de Estudos da Criança, da Universidade do Minho. É colaborador no Centro de Investigação SEPA ? Interea (Pedagogia Social e Educação Ambiental), associado à Universidade de Santiago de Compostela, Galiza. Representa Portugal na direcção da Sociedade Ibero-Americana de Pedagogia Social. Paulo Delgado, é também autor do livro "Os Direitos da Criança ? Da participação à responsabilidade", recentemente editado pela Profedições.

O investigador comenta:

Os recentes apelos à redução da idade da imputabilidade dos jovens, vistos como medida para combater a criminalidade juvenil.

"Se olharmos para o grupo de crianças e jovens em risco, verificamos que o número de institucionalizados nos centros educativos (onde são colocados os jovens que cometem algum tipo de crime) ronda os duzentos, dos cerca de 10 mil que, no total, estão em instituições de acolhimento. Portanto, penso que não é através, por um lado, das medidas punitivas, por outro, da redução da idade da imputabilidade, que se combate a criminalidade juvenil. Até porque há uma grande contrariedade no sistema: um jovem só pode usufruir de certos direitos (como o de voto) aos 18, mas pode responder penalmente aos 16 anos. Face a isto, parece-me que seria mais lógico subir a idade da imputabilidade para os 18 anos. Abrindo, no entanto, excepções entre os 16 e os 18 anos para os casos de delinquência pesada, eventualmente com medidas mais punitivas."

"Os media aceleram certos processos de marginalização (...) atribuindo notoriedade social que os jovens não obteriam pelos meios legítimos (...)" diz também que "a dramatização provoca o medo do crime no publico que serve para legitimar as politicas de maior controlo e firmeza." Frase do autor retirada do livro "Os Direitos da Criança ? Da participação à responsabilidade".

Quando os jovens cometem crimes graves que põem em causa a segurança dos bens e das pessoas, de uma forma reiterada, têm de ser responsabilizados e alvo de medidas. Essas medidas, estão previstas no nosso sistema de protecção de menores e no penal. É evidente que os órgãos de comunicação social, nem sempre utilizam critérios éticos na forma como apresentam estes casos [de criminalidade], acabando por amplificar o fenómeno para o bem e para o mal. Normalmente, é para o mal, porque o jovem aparece sempre como o agressor que tem de ser punido, ou ? agora de forma mais frequente ? como a vítima às mãos dos adultos. Mas este fenómeno não pode ser dissociado de um outro que diz respeito à atribuição de uma maior participação à criança e ao jovem. Á medida que se atribui maior responsabilidade à criança e ao jovem e se lhe reconhece maior poder, maior será também o seu dever.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Paulo Delgado
Investigador na área da Educação Social
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Paulo Delgado
Investigador na área da Educação Social

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