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Para além das bruxas ...
Em plena caça às bruxas, a ideia da existência de um mundo demoníaco e invisível era tão essencial para explicar as irregularidades e descontinuidades de um mundo visível e real que era impensável negar a existência de bruxas. A sobrevivência e estabilidade de uma certa visão do mundo dependia da existência de um bode expiatório, as bruxas, cujas práticas invertiam, literalmente, o mundo real e normal. Este fenómeno é observável recorrentemente em vários domínios sociais: designar um bode expiatório tem uma função simbólica relevante ("já sabemos onde reside o problema!"), produz a sensação de segurança e controlo, ainda que ilusória, e permite "continuar a viver a nossa vida", o que constitui certamente a sua função mais importante. O bode expiatório permite ao "denunciante" assumir uma retórica de mudança, mas deixando tudo na mesma.
Creio que assistimos, nos últimos anos, a um fenómeno similar no domínio da Educação. Confrontados com as dificuldades e insucessos que o alargamento da escolaridade a todos os meninos e meninas revelou ? e que nos parecem ainda mais chocantes porque não têm paralelo noutros países europeus, nossos parceiros e congéneres em tantas outras coisas ?, uma forma de (não) lidar com o problema é designar um culpado. A culpa é, no dizer de alguns, das pedagogias modernas (o "eduquês") que exercem uma influência perniciosa sobre as escolas e os professores. Não interessa ao argumento se esta influência é ilusória ou real: a visão do mundo da escola organizado e regular do "nosso" tempo só sobrevive se as suas irregularidades e descontinuidades de hoje forem devidas a um segmento identificado como defendendo o inverso das "boas práticas" de então. Trata-se, como afirma exemplarmente Nuno Crato, de não nos "esquivarmos às dicotomias" (2006, p.17): disciplina vs. indisciplina; exames vs. facilitismo, etc. E tem razão: a sobrevivência do "seu" mundo da educação depende dessas dicotomias, por muito que essa forma simples (querendo aqui dizer pouco complexa) de ver o mundo nada contribua para a resolução do problema (o que talvez seja uma preocupação meramente acessória).
Ora, é talvez tempo de ver o problema da educação como "nosso" (e não "deles"). Quer isto dizer que a educação é uma tarefa partilhada por professores, pais e outros adultos que devem, como diria Hanna Arendt, assumir a dupla responsabilidade pelas crianças e pelo mundo. Para isso, é essencial ir para além das aparências e, em vez de nos entretermos com análises retóricas, lermos e ouvirmos o que nos dizem os dados da investigação em educação. Retomo aqui o exemplo de um estudo de avaliação internacional das aprendizagens escolares, desses estudos internacionais que são tantas vezes invocados e tão poucas conhecidos. Neste caso, o Estudo Internacional de Educação Cívica liderado pela International Association for the Evaluation of Educational Achievement (IEA), entre 1994 e 2002. A participação portuguesa foi conduzida pelo extinto Instituto de Inovação Educacional (IIE) e envolveu a testagem de amostras representativas de alunos portugueses do 8º, 9º e 11º anos de escolaridade (o relatório foi publicado pela Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular em 2005). O inquérito envolveu a avaliação de conhecimentos (por exemplo, características nucleares da democracia) e competências (por exemplo, ser capaz de descodificar a mensagem de um cartoon político) no domínio da cidadania. Os resultados demonstraram que, nestas dimensões, os alunos portugueses do 8º ano se situam abaixo da média internacional e que os do 9º e do 11º anos de escolaridade se situam acima da média internacional. Esta discrepância parece poder ser explicada pela existência de significativas diferenças entre estes alunos quanto a um conjunto de indicadores do nível educacional da família de origem: os alunos com piores resultados têm pais com níveis de escolaridade mais baixos e menos livros em casa, um indicador dos recursos culturais da família. Este fenómeno também era detectável noutros países, ou seja, o nível de conhecimentos e competências no domínio da cidadania aumenta quando aumenta o número de livros em casa (a excepção são alguns países asiáticos em que a frequência de bibliotecas parece ser uma prática usual), mas a percentagem de alunos que dizia ter poucos livros (até 10 livros) era francamente superior em Portugal.
Os dados deste estudo sugerem, de imediato, dois comentários determinados pelo perfil misto de resultados, abaixo e acima da média internacional, o que inibe as usuais leituras simplistas. Desde logo, o nível atingido pelos alunos portugueses é similar ou superior ao de outros países, mesmo quando as amostras portuguesas são, como é o caso do ensino secundário, menos selectivas (ou seja, incluem uma maior percentagem de jovens daquela idade e geração; noutros países, a percentagem de alunos que frequentam o tipo de ensino secundário testado é menor). Adicionalmente, o estudo também revela a incapacidade em contrariar os efeitos do nível educacional da família de origem, e portanto a influência de factores a montante da escola, cujo impacto é particularmente saliente no 8º ano. É por isso que se a investigação é essencial para produzir um discurso sobre educação, talvez valha também a pena escutar efectivamente o que nos dizem "essas" pedagogias sócio-construtivistas quando colocam no centro o que lá deve estar: o conhecimento e a aprendizagem. Porque só a valorização do conhecimento e da aprendizagem, na escola e fora da escola, serve ao exercício dessa responsabilidade colectiva que é a educação das crianças e dos jovens.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Isabel Menezes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Isabel Menezes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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