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"Todos os problemas sociais passaram a ser escolares"

António Teodoro em entrevista a ?a Página?

Nenhum professor consegue responder a tanto, e muito menos quando é claramente hostilizado

?A nova equipa do ministério está totalmente afastada da política educativa e da problemática das Ciências da Educação?. Esta sentença - a que o jornal ?a Página?, no seu primeiro número, em Janeiro de 1992, deu adequado destaque - referia-se à equipa do ministro Diamantino Durão e foi proferida por António Teodoro, então secretário-geral da FENPROF.
Quinze anos depois, António Teodoro, hoje professor na Universidade Lusófona e vice-presidente do Comité de Investigação de Sociologia da Educação da Associação Internacional de Sociologia, é, de novo, entrevistado de ?a Página?. E dá-se a coincidência do entrevistador voltar a ser eu, João Rita, pobre jornalista, que ainda não esgotei todos os apontamentos recolhidos nessa entrevista de Dezembro de 1991 onde, pela primeira vez, vi a grandeza da profissão de professor quando este assume a sua vocação de intelectual transformador.

Contar ou não contar com os professores

Como há 15 anos, quando Diamantino Durão extinguia a Secretaria de Estado da Reforma Educativa, herdada de Roberto Carneiro, e queria fazer mudanças na Educação sem considerar o indispensável contributo dos professores, também hoje se ensaiam alterações na Escola remetendo para um segundo plano, ou até ignorando, os profissionais da Educação, em especial os professores.
António Teodoro lembra-nos que, no caso do actual Ministério da Educação, a legitimidade para exercer o Poder, só por si, não evita a conflitualidade, especialmente quando é indisfarçável, e quase acarinhada, a ideia governamental de que os males da Educação e do Ensino residem nos professores. Basta lembrar sinais que saem do Ministério da Educação, às vezes em contradição com os discursos oficiais, como os que empolaram a questão da avaliação, avaliação que os professores não recusam mas não com um quase carácter de punição persecutória como o que transparecia do secundaríssimo aspecto que seria o contributo dos pais em tal processo.
A este propósito do tratamento concedido aos professores, António Teodoro desafiou-nos a procurar, por exemplo na Internet, informação sobre o que está a passar-se em Espanha. Fomos ver e, como dizia António Teodoro, Madrid reconhece o papel dos professores como em Portugal jamais se reconheceu. Bastou-nos ler um dos parágrafos da intervenção da ministra Mercedes Cabrera Calvo-Sotelo, na abertura do ano escolar, em cerimónia realizada a 11 de Setembro em Avilès.
?En estas palabras de inicio de curso no quiero dejar de expresar todo mi reconocimiento al trabajo que realiza el profesorado. Sabemos que ninguna mejora del sistema educativo es posible sin su colaboracion y compromiso. Su profesionalidad debe reforzarse, elevando no sólo su reconocimiento social sino tambièn su formación inicial y continua?, disse Mercedes Cabrera Calvo-Sotelo. Não há memoria de se ouvir, em Portugal, da boca do Poder, um compromisso no sentido do reforço do reconhecimento social dos professores.
Já em 1987 ? leio na mesma edição de ?a Página? onde foi publicada a nossa primeira entrevista a António Teodoro - , o então indigitado ministro Roberto Carneiro confessava, na Assembleia da República, que o estatuto social dos professores estava mais desvalorizado do que em 1967.
Em Janeiro de 1992, num documento discutido numa Conferência Nacional do Ensino Preparatório e Secundário que a FENPROF organizou em Albufeira, documento que teve, plausivelmente, a contribuição activa de António Teodoro, lia-se que ?o professor não é um funcionário, é um intelectual cuja função não é cumprir passivamente ordens mas pensar criticamente o exercício da sua função e a instituição escolar?.
Neste ano da graça de 2006, não é assim que o governo vê os professores. Tampouco parece reconhecer-lhes o dever de definirem, com os seus pares, um projecto pedagógico próprio, por cujo êxito se responsabilizam, num quadro de uma participação, pela reflexão crítica e pela acção reflectida, na definição da política educativa. 

Problemas sociais são todos escolares

Recupero agora uma nota, à data sublinhada por António Teodoro, quando citou um conselho do então director do ?Le Monde?, Jacques Lesourme, que num relatório sobre os grandes desafios da Educação para a França do ano 2000 (como é fácil ler isto em 2006) dizia que a única via para mudar, de facto, a escola, centra-se em dois grandes eixos, o da autonomia das escolas e o da valorização dos professores.
António Teodoro sublinhava a vermelho os sentimentos generalizados de  náuseas dos professores e da opinião pública ligada à Educação quando se fala, com aquele ar asséptico do Poder, numa Reforma Educativa que se encomenda a uns quantos técnicos e se tenta impor, com a evocada legitimidade da maioria, a todos. Era um manifesto francês contra as políticas públicas dos últimos 25 anos, na linha de um chamado «consenso de Washington» que o próprio professor António Teodoro tão bem caracterizou num artigo publicado em ?a Página?, há cerca de um ano.
?(?) As políticas públicas, nos últimos vinte e cinco anos, têm sido marcadas por uma ortodoxia que tem no chamado «consenso de Washington» a sua expressão síntese: disciplina fiscal, cortes na despesa pública, reforma fiscal, liberalização financeira, taxas de câmbio, liberalização do comércio, investimento estrangeiro directo, privatização, desregulação e direitos de propriedade. Também na educação, neste período, se assistiu à lenta mas segura afirmação de um novo bloco social hegemónico que tem vindo a impor um novo senso comum nas políticas de educação, assente numa redução dos conceitos de democracia (e de democratização do ensino) às práticas de consumo (educacional), de cidadania a um individualismo possessivo, e de igualdade ao medo da diferença e ressentimento face ao outro (?)?.
E, no entanto, como sublinha de novo, agora, António Teodoro, estará mais de acordo com o nosso tempo, e com um desejável processo histórico crescentemente civilizacional, que a Escola deixe de ser reprodutora de desigualdades para ser, prioritariamente, geradora de mudanças e emancipadora. Lembra-nos António Teodoro, que a escola como lugar central no processo de construção da modernidade resulta da consagração da superioridade da escrita sobre a cultura oral, do trabalho intelectual sobre o trabalho manual. E tem sido assim nos últimos três séculos, enraizando a ideia de que tudo e todos os problemas se remedeiam sempre com mais Educação. ?Hoje todos os problemas sociais são escolares?, lembra Teodoro.
Como se a Escola fosse, e é erradamente aos olhos de muitos, a grande responsável pela existência do desemprego, pela proliferação da droga, pelo alastramento da pobreza, pelo insucesso das minorias? Como assim, se a escola está a ser embrulhada numa lógica individualista, num quadro concorrencial absurdo, apesar de pretender, constantemente, dar corpo a uma política de inclusão?
José Paulo Serralheiro, director de ?a Página?, testemunha e participante desta entrevista a António Teodoro, de quem aliás também é editor (a Profedições acaba de publicar, na Colecção Andarilho, o título ?Professores, para quê? Mudanças e Desafios na Profissão Docente?, de António Teodoro), há muito que defende a ?reinvenção? do sistema, uma espécie de recriação da escola que resta da matriz que assenta bases na Reforma e na Contra-Reforma até contribuir, já no século XIX para a consolidação das cidadanias nacionais e a afirmação dos Estados-nação. Este modelo de escola, capaz de ?ensinar a muitos como se fosse a um só?, já não responde às exigências que se colocam às sociedades dos nossos dias.

Como aprender a viver juntos ?

Hoje, a procura da distinção pelo conhecimento, com o consequente reconhecimento e sucesso (sonho sempre acalentado por quem acha que isto-nunca-esteve-tão-mal-como-agora, neste tempo em que até-o-filho-da-porteira-já-anda-na-universidade) esbarra nessa necessidade de aprendermos a viver juntos. Na conversa, de há dias, com António Teodoro e José Paulo Serralheiro, num encontro, para almoço, que decorreu no Restaurante do Pavilhão Rosa Mota, atrevi-me a citar um pequeno texto que escrevi para um catálogo de uma exposição de artes plásticas patente no Shopping Center Brasília, texto ao qual dei o título de ?Como viver juntos?, plagiando o tema da 27ª Bienal de S. Paulo, a decorrer, tema que, por sua vez, foi também o de um seminário orientado por Roland Barthes, em 1976, no Collège de France.
?É a grande interrogação e o grande desafio do século XXI, descobrir se podemos, realmente, viver juntos?, diz António Teodoro. Um entrevistado, como António Teodoro, também marca o rumo da própria entrevista, e o tema do multiculturalismo que está subjacente à ideia de combater o intolerável reconhecimento da existência de discriminações das culturas minoritárias, levou-nos para os domínios da livre escolha da escola, dos rankings, dessa busca de ?distinção? e ?segurança?? Lembrando, por outras palavras, aqui já citadas, o que ele próprio já tinha escrito em ?a Página?, que no quadro do chamado «consenso de Washington», se assiste ?à lenta mas segura afirmação de um novo bloco social hegemónico que tem vindo a impor um novo senso comum nas políticas de educação, assente numa redução dos conceitos de democracia (e de democratização do ensino) às práticas de consumo (educacional), de cidadania a um individualismo possessivo, e de igualdade ao medo da diferença e ressentimento face ao outro?.
Será hoje possível (neste Mundo em que se constrói um muro de betão e arame farpado, de 1200 quilómetros, a separar os Estados Unidos da América do México) que, na expressão feliz de Boaventura Sousa Santos, citada por António Teodoro, durante esta conversa, ?se reconheça o direito a ser igual, quando a diferença inferioriza, e o direito a ser diferente, quando a igualdade descaracteriza?? E será, ou não, este o verdadeiro trabalho de pensar o trabalho que se deve exigir, na escola, a todos os professores?
Quem é socialmente lúcido sabe que a solução está muito mais próxima dos ensaios de construção de outras sociedades, como os experimentados, em Portugal, na sequência da Revolução dos Cravos (1974), ou os discutidos  no Fórum Social Mundial, do que numa asséptica globalização neoliberal, desregulada, que, por exemplo, dá como natural a existência de pobreza. Tempos houve, lembra António Teodoro, que ninguém, ou quase ninguém questionava a escravatura, e que nas Igrejas se discutia se os negros tinham alma? E, no entanto, hoje a escravatura está, oficialmente, erradicada.
Que escola estamos a refazer neste contexto? E que interesses presidem à ideia de que os males da nossa escola (onde se gasta tanto dinheiro!) residem nos professores, no suposto laxismo dos professores, que agora, alguns poderes, cegamente combatem e elevam à categoria de bodes expiatórios?
Neste contexto, em ?que os professores nunca trabalharam tanto e nunca viram tão poucos resultados?, a hostilidade do Governo para com a classe docente (António Teodoro lembra que a tónica deste governo, de dar pequenos passos, está ser contrariada na Educação) levará, inevitavelmente, a que a esmagadora maioria dos professores passe a usar máscara e véu para agir e sobreviver e para acautelar a própria alma da profissão.
Os ecos da conversa com António Teodoro, mais do que justificada pela recente edição de ?Professores, para quê? Mudanças e Desafios na Profissão Docente?, o título mais recente de António Teodoro, só podem terminar com o texto de abertura deste mesmo livro, uma citação de Paulo Freire, aqui reproduzida como convite à sua leitura total.
É um parágrafo da ?Pedagogia da Autonomia? (Paulo Freire, 1997).
?Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, tanto mais me convenço do dever nosso de lutar no sentido de que ela seja realmente respeitada. O respeito que devemos aos educandos dificilmente se cumpre, se não somos tratados com dignidade e decência pela administração privada ou pública da Educação?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

António Teodoro
Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa
João Rita
Jornalista, Porto
António Teodoro
Univ. Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa
João Rita
Jornalista, Porto

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