Página  >  Edições  >  N.º 161  >  A juventude nunca é o que era

A juventude nunca é o que era

A juventude já não é o que era. A expressão pode ser banal, de sempre, óbvia, mas há quem não aceite o facto. Há alguma má vontade contra os jovens, porque são irreverentes, desobedientes. Sempre o foram, mais ou menos, ou a adolescência não fosse a fase da construção da identidade. A tradição é que de facto já não é o que era. As novas tecnologias alteraram hábitos. A televisão e a Internet substituem a atenção dos pais. A informação circula rápido, o mercado de consumo assedia sem dó nem piedade. A imagem conta. Muito, por mais que os jovens neguem. A escola vale pelo convívio, os estudantes estratificam-se em tribos. Todos diferentes, todos iguais. A reportagem que se segue tem por objectivo fazer um retrato aleatório da juventude de hoje. Os nomes dos adolescentes são fictícios, para protecção dos próprios.

Entre dois casacos exactamente iguais, Joana compraria o que tivesse marca. Etiqueta de origem ou contrafacção. ?Uma pessoa fica mais feliz com roupa de marca. Faz com que nos sintamos bem.? Luísa, em contrapartida, é peremptória: ?Não é pela marca que gosto da peça de roupa. Ir ao teatro é muito mais importante?. São ambas alunas do Curso de Turismo do Centro Juvenil de Contumil, no Porto. 12º ano.
João veste marcas dos pés ao pescoço. Tem 18 anos, frequenta o 11º ano na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo, no Porto. ?Compro de marca porque tenho dinheiro. Preocupo-me com a minha própria imagem, não com a dos outros?, porque ?a imagem não é importante, o que importa é o que vai lá dentro?.
?Para mim?, Antónia, 19 anos, 2º ano de Informática na Faculdade de Engenharia do Porto, ?a roupa que visto tem muita importância, porque tenho de me vestir e sentir-me bem comigo mesma. Visto o que é ao meu gosto, roupa prática, confortável e juvenil e que não evidencie o tamanho do meu rabo?. Para Pedro, 18 anos, colega de turma da Luísa e da Joana, ?a imagem é importante, mas não se pode avaliar o livro pela capa?.
?Tenho preferências de marcas, mas é mais porque tenho uma afinidade com o tipo de produtos dessa marca, como por exemplo, marcas de roupas de skate. Mas a verdade é que já comprei coisas de marca apenas pelo primeiro impulso, que depois não gostei assim tanto e não eram produtos com tanta qualidade quanto isso?, diz Sérgio, 17 anos, 12º ano, Escola Secundária Soares dos Reis, no Porto.
Maria, 11 anos, 6º ano da Escola EB 2,3 de Matosinhos, nega que a imagem e as marcas tenham importância, mas gosta de comprar roupa e bijutaria da moda, acessórios e canetas de colecções em voga, tema de conversa com o grupo de amigas. Isabel, 15 anos, 9º ano, na mesma escola de João, acha que ?as marcas não têm importância? e a apresentação também não, só ?se for beto não gosto, têm a mania que são inteligentes?.
 ?O culto da imagem e a procura do look perfeito que os media transmitem cria, às vezes, ambientes de exclusão de algum tipo de crianças e jovens. O que pode causar depressões e desmotivações?, comenta Sérgio, para quem a escola ?representa praticamente a minha vida?, porque é lá que passa quase todo o tempo. ?Andar na escola é ter objectivos diários. Estudo porque tenho objectivos?.
Antónia estuda porque também tem um objectivo: tirar um curso e poder escolher uma profissão que goste. ?Tenho uma relação de compromisso com a escola: a escola ensinar-me e eu aprender.? Luísa gosta de andar na escola e quer ser ?eterna estudante?. Maria anda na escola ?para um dia mais tarde ter trabalho?. João continua a estudar para ?tentar entrar para a faculdade, arranjar trabalho e seguir uma vida honesta?. Isabel por ?obrigação?. Para Joana é ?um dever: é fundamental ter pelo menos o 12º ano?. José, colega de turma da Joana e da Luísa, gosta de aprender e ?o convívio é fixe?.

Atitude instrumental face à escola

O recreio atrai mais do que as aulas. Mas a sociabilização não é fácil para todos. Segundo o sociólogo João Teixeira Lopes, "há uma apropriação festiva da escola" mas, em paralelo, "a integração dos jovens nos grupos é difícil: o sofrimento não é só na sala de aula. Os grupos são muito tiranos, fazem exigências múltiplas?.
À conversa com ?a PÁGINA? a propósito dos jovens de hoje, João Teixeira Lopes afirmou que há ?pluralidade de atitudes face à escola?, um dado actual que contraria a sua própria investigação dos anos 90, que classifica de "adesão acrítica à recusa" a relação dos jovens com a escola. Em ?Tristes Escolas? (1995, edições Afrontamento), viu apenas o lado da recusa da escola enquanto obrigação. E que toda a vivência extra-escola é mais importante, sendo aí que os jovens investiam.
"Não é assim", afirma agora. Os jovens têm uma "atitude instrumental" perante a escola: têm uma sociabilização por antecipação e moldam o presente em função da meta que traçaram para a escola. "Percebem qual o seu futuro possível e são capazes de dosear o seu comportamento de estudante em função dos objectivos a atingir". Por exemplo: se só querem passar de ano, não se esforçam para ter nota superior à mínima.
Em contraponto a escola não consegue atrair os jovens. A acção pedagógica não é capaz de destruir a visão instrumental face à escola. "A Escola vê apenas o papel do estudante, esquece o jovem. Vê o jovem como um ser unidimensional e não percebe que os processos de sociabilização são múltiplos?. Ser jovem ?é um processo de identidade?, alerta. E nessa descoberta da identidade, os jovens acabam ?espartilhados pela escola e pela sociedade de consumo, que lhes dá a ilusão de diversidade?, apesar da igualdade de padrão. 
 ?O discurso conservador ainda os espartilha mais?, acrescenta o sociólogo. ?A visão do aluno ascético, altamente esforçado é antiquada. Todo o lado onírico, experimental, hedonista, lúdico da aprendizagem é esmagado pelo discurso conservador do estudante, fora deste mundo. É preciso conhecer os jovens na vivência da sua época. Os jovens têm muitos mundos. Nessa intersecção é que está a abordagem?.

Habituados a não se esforçarem

?A cultura do trabalho já não existe. A noção de que estudar exige trabalho desapareceu?, afirma Vítor Mesquita, vice-presidente do conselho executivo da Escola E,B 2/3 da Senhora da Hora. Para este professor de Matemática há 30 anos, os alunos ?acham que vir para a escola é brincar e não se interessam pelas aulas?. Em parte consequência dos ?erros da teorias liberais da educação, exagerou-se na ideia de aprender brincando?. Por outro lado, culpa os pais. A má educação reina entre os jovens que frequentam aquela escola, assegura. ?O maior problema são os pais e não ao alunos?.
Diz Vítor Mesquita que ?os pais tendem a vir à escola tirar satisfações e não perguntam o que podem fazer para melhorar a situação do filho(a). Todos têm direitos mas não têm deveres? e ?os pais exigem pouco dos filhos?.
Os pais ?delegam na escola a educação dos filhos?, afirma Paulo Teixeira de Sousa, também professor de Matemática, na Escola Secundária Fontes Pereira de Melo. Os alunos ?não têm regras? e ?não se esforçam nada, vêm até habituados que não precisam de se esforçar muito para passar?, cada vez é mais difícil reprovar um aluno no Ensino Básico.
A maioria dos estudantes desta escola frequenta o Curso de Educação e Formação. Têm por objectivo ?fazer o 9º ano e tirar a carta?, diz Paulo Teixeira de Sousa. São sobretudo oriundos de bairros sociais. Herdaram fracassos, defendem-se como podem. Criaram uma ?tribo? facilmente identificável. Os rapazes que não usam boné têm um corte de cabelo específico, as calças invariavelmente descaídas, brinco numa orelha. As raparigas vestem-se como se fossem à discoteca, barriga preferencialmente à mostra.
Alice Rodrigues, psicóloga a tempo inteiro naquela escola, sorri enquanto observa que apesar de aparentemente andarem todos vestidos da mesma maneira, há diferenças, por exemplo, na forma como usam o boné. ?Isto merecia um estudo?, comenta. A forma como colocam o boné corresponderá a algum código? Paulo Teixeira de Sousa lamenta que seja uma tribo de comportamento e não de ideais. 
?Vejo a juventude do meu tempo com um bocado de desilusão. O pessoal dos bairros desde cedo entra numa vida de violência e depois acabam por se tornar nos gunas que tanto podem ser uns armalhões como mesmo entrar em gangs e crime e drogas pesadas. Depois há os miúdos mimadinhos, que entram na onda dos filmes americanos, com as popularidades dos liceus?, desabafa Sérgio, o estudante da Soares dos Reis, onde diz sentir-se ?confortável?. Mas outrora teve problemas, no 5º e no 6º ano, com o chamado ?bullying?. O bullying corresponde a actos intimidatórios, de humilhação e violência, muito frequentes na Fontes Pereira de Melo, que se vem agravando nos últimos anos, segundo a psicóloga da escola. O bullying vem sendo alvo de estudos noutros países.

Novas tecnologias mudam valores

Gunas odeiam betos e betos odeiam gunas. A diferenciação das classes sociais não perdeu terreno no reino dos jovens. Mas ricos, remediados, pobres, betos, gunas, rastas, dreads ou freaks, poucos concebem o mundo sem telemóvel, de polegares atarefados em sms, inovando a linguagem para poupar caracteres. Em linguagem oral, ser ?tecla 3? é insulto. O calão progride desenfreado.
Pelas novas tecnologias chega-lhes a informação, a música de que não prescindem, ?parte importantíssima? das suas vidas, asseguram. O walkman foi substituído e multiplicado por mp3. ?A entrada nesse mundo foi bastante tarde?, comenta Sérgio, ?foi quando tive pela primeira vez o infame kazaa e comecei a sacar músicas da net e comecei a ter o vício de ouvir tudo e identificar todas as bandas e músicas?.
Os jovens ?cada vez são mais ciborgues ? parte humana, parte máquina?, considera João Teixeira Lopes. ?As novas tecnologias adaptam-se amigavelmente e prolongam o corpo humano. A nova linguagem é imaginativa: permite prolongar, na interacção à distância, as marcas da corporalidade e da comunicação face a face?, observa. No entanto, ?pode ser empobrecedora se significar substituição progressiva da co-presença e da sensibilidade pela interacção à distância. Nada há o que substitua o ser sensível no mundo?.
Estamos mais próximos do admirável mundo novo? Provavelmente. Mas dizer ?os jovens já não têm valores?, como é frequente ouvir-se, não é justo. ?Dizer que não há valores é já um juízo de valor e diz mais de quem o afirma do que dos visados", acusa João Teixeira Lopes. ?Se há algo que caracteriza os valores é a sua mutabilidade. Um valor que corresponde a uma realidade ultrapassada é para o jovem um preconceito. Os valores têm de ser adaptados. São sempre provisórios, normativos e vão sendo adaptados porque têm de ser alicerçados à realidade?.
Ou seja, passamos a vida a projectar os nossos valores nos valores dos outros. Os jovens não são tábua rasa!


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

Cristina Moura Fonseca

Cristina Moura Fonseca

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo