Página  >  Edições  >  N.º 160  >  Cheveik e o capelão desembaraçam-se de uma visita desagradável

Cheveik e o capelão desembaraçam-se de uma visita desagradável

No jornal anterior relatamos a visita inesperada de um bem intencionado capelão militar. Desta vez Cheveik e o seu capelão são forçados a desembaraçar-se de uma visita desagradável.

Chveik abriu a porta a um cavalheiro entre duas idades, de cabelos grisalhos, direito como um I e de olhar muito severo. O aspecto exterior revelava teimosia e maldade. Rebolava os olhos ferozes, como se tivesse o encargo de destruir para todo o sempre o globo terrestre, para que não restasse dele senão uma pitada de cinzas no universo.
A linguagem era arrogante e seca, cada frase correspon­dia a uma ordem expressa.
- Não está? Foi ao café? Tenho de esperar? Pois bem, tenho tempo de sobra até amanhã de manhã. Quer dizer, por­tanto, que tem dinheiro para a taberna, mas nem um chavo para pagar as dívidas. E é isto um padre? Safa!
E cuspiu para o chão da cozinha.
- Oiça lá, não cuspa assim, se faz favor! - repreendeu Chveik, medindo de alto a baixo o insolente personagem com um interesse particular.
- Pois cuspirei tantas vezes quantas eu quiser, olhe, assim - replicou o cavalheiro, juntando o gesto à palavra. ­Em suma, é repugnante! Um capelão militar! Mas é simples­mente vergonhoso!
-  Visto que o senhor pretende ter instrução - observou­-lhe Chveik - trate de se desembaraçar do imundo hábito de cuspir numa casa que não é a sua. O senhor julga talvez que tudo é permitido num tempo de guerra como este? Vai fazer­-me o favor de se portar como um homem bem-educado e não como um malandro. Trate de ser urbano, de falar com cortesia e de não se conduzir como um porcalhão. Compreendeu, espé­cie de besta civil?
O cavalheiro incorrecto levantou-se, agitado por um estremecimento nervoso, e bradou:
- Como é que o senhor se atreve a dizer-me isso. Eu não sou um homem decente? Então o que é que eu sou?
- Um suíno mal-educado - respondeu Chveik, fixando-o nos olhos. ? Cospe para o chão como se estivesse no carro eléctrico, no comboio ou noutro lugar público. Nunca com­preendi porque é que põem letreiros ?É proibido cuspir?. Agora já sei, é por sua causa; deve ser um gabiru muito conhecido.
Sucessivamente pálido e congestionado, o visitante expan­diu-se numa avalanche de invectivas contra Chveik e o seu superior, o capelão militar..
- Já vomitou tudo? - interrogou tranquilamente Chveik, quando o visitante indecente declarou que ?eram ambos uns pulhas; tal patrão, tal criado? -, ou tem mais alguma coisa a  dizer antes de desandar pela escada abaixo?
Como o adversário se calasse para retomar fôlego e mais nenhum insulto lhe viesse ao espírito, Chveik considerou o silêncio como um convite para passar aos actos.
Abriu a porta, manteve o molesto visitante de maneira que visse o trajecto que tinha de percorrer e aplicou-lhe um pon­tapé no traseiro, cujo vigor teria causado inveja ao melhor jogador internacional de futebol.
O visitante maltratado passeava agora na rua, espiando o regresso do capelao.
Chveik abriu a janela e vigiava o passeante infatigável.
Enfim, o capelão apareceu e mandou subir o seu perse­guidor para o quarto. Ofereceu-lhe uma cadeira e sentou-se na frente dele.
Enquanto Cheveik seguia para a cozinha, começou uma conversa muito animada entre os dois homens.
- O senhor procura-me por causa da letra, se não me engano? - interrogou o capelão.
- Sim, e espero...
O padre suspirou.
- Realmente, encontramo-nos muitas vezes em situações em que tudo o que podemos fazer é esperar. É bonita esta palavra esperança. Evoca duas outras: a fé e a caridade!
- Eu espero, senhor capelão, que a importância que me deve...
- Eu só posso repetir-lhe ? interrompeu o capelão - que esta palavrinha ?espe­rar? é necessária para nos amparar na luta pela existência. Veja, o senhor nunca perderá a esperança de ser reembolsado. É bonito ter um ideal, ser um homem de boa-fé, que empresta dinheiro ­a troco de uma letra e espera que esta seja paga na devida altura!
- Então, o senhor...
- Perfeitamente...
- É uma vigarice da sua parte, cavalheiro.
- Tenho a impressão de que um pouco de ar fresco lhe fará bem - insinuou o capelão. E, alteando a voz para ser ouvida na cozinha, disse:
- Venha cá, Chveik. Este cavalheiro deseja tomar ar.
- Declaro com obediência, senhor capelão, que já pus este cavalheiro no olho da rua...
- Ponha-o outra vez - ordenou o feldkurat.
- Chveik não se fez rogado para obedecer a esta ordem com uma alegria maligna.
- Pronto, já está, senhor capelão - anunciou, fechando a porta. - Felizmente que o pusemos fora antes de ter tempo de fazer um escândalo.
- Está vendo, Chveik, o que acontece às pessoas que não veneram os padres - gracejou o capelão. Mas temos de nos preparar con­venientemente para amanhã. Arranje uma boa omeleta de pre­sunto e um grogue.`

(O Valente soldado Cheveik; Juroslav Hasek)
Recorte e adaptação: J. Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo