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Os cristais líquidos

Os cristais líquidos foram descobertos como um estranho estado da matéria pelo botânico austríaco Friedrich Reinitzer em 1888 e, dois anos mais tarde, o físico alemão Otto Lehman. Eles observaram, ao elevar a temperatura de certas substâncias, em vez de uma única transição de fase (a fusão), duas transições sucessivas, desde o estado inicial de sólido ao estado final de líquido; o fenómeno era patente nas visíveis alterações das propriedades ópticas. Os físicos franceses Charles Mauguin (1911) e Georges Friedel (1922) descreveriam e sistematizariam depois a estrutura molecular e as propriedades de cristais líquidos. Foi uma descoberta surpreendente, essa da transição do estado ordenado de cristal, próprio dos sólidos, para o estado desordenado e isotrópico, próprio dos líquidos, passando por um estado intermédio, a ?mesofase?, em que as moléculas, embora já móveis, preservam elevado grau de ordenamento. Tal acontece em consequência da forma das moléculas e da interacção que entre elas se estabelece. Entre as substancias que se comportam como cristais líquidos contam-se compostos da família do colesterol, constituídos por longas moléculas helicoidais dotadas de simetria quiral (isto é, com dois sentidos de enrolamento possíveis). Mas existem algumas outras famílias de compostos com diferenciados conjuntos de propriedades, no seguimento das revelações de Mauguin e Friedel, no agora vasto mundo dos cristais líquidos.
Só a partir de meados do século XX foi prosseguida uma investigação sustentada dos cristais líquidos, sintetizando novos compostos e desvendando a relação subjacente entre a estrutura das moléculas e as respectivas propriedades térmicas, ópticas e eléctricas. As potencialidades tecnológicas dos cristais líquidos foram reconhecidas; filmes de cristal líquido exibem propriedades ópticas para a luz reflectida ou transmitida, que variam com a temperatura ou com o campo eléctrico aplicado entre as duas faces do filme. A primeira patente, registada em 1936 pela Marconi Wireless Telegraph Co., referia-se a uma simples ?válvula de luz?. Na década de 60 foram construídos os primeiros visores de cristal líquido; a partir de então, as inovações multiplicaram-se em competição. Subjacente a estas e muitas outras subsequentes invenções, está a capacidade de fazer alinhar as moléculas de cristal líquido sob a acção de um campo eléctrico aplicado.
Os modernos ecrãs planos LCD (?liquid crystal display?) fazem uso das propriedades outrora insólitas dos cristais líquidos. O cristal líquido forma aí uma película ou filme que preenche o intervalo entre duas lâminas de vidro; cada uma destas lâminas suporta na face externa um filtro polarizador (que determina a direcção de vibração da luz transmitida); a face interna da lâmina traseira está recoberta de minúsculos transístores de filme fino (TFT), cada um dos quais permite ligar ou desligar a tensão eléctrica aplicada a um pequeno elemento do cristal líquido; este vai assim funcionar como um pixel, mais ou menos transparente ou opaco, do ecrã. Por de trás, o ecrã é iluminado por um plano de luz (actualmente produzida por LED ? díodos emissores de luz). Os modernos ecrãs de dimensão corrente contêm cerca de um milhão de píxeis, individualmente comandados por endereçamento matricial dos TFT, permitindo a replicação de imagens com elevado conteúdo informativo.
Hoje, são-nos familiares ecrãs planos LCD nos computadores portáteis, nos visores de telemóveis e de navegadores GPS, e, em maior dimensão, nos modernos televisores. Notar que o portátil, hoje um instrumento de trabalho ou lazer quotidianamente acessível a tantos utilizadores, seria impensável sem os ecrãs planos de cristal líquido, graças à sua compactidade e baixo consumo de energia.
Entretanto, dão-se os primeiros passos em ecrãs flexíveis de substrato plástico (em vez de vidro). Teoricamente proporcionarão um fabrico mais rápido e económico; e prometem novos domínios de aplicação. A competição é feroz e o volume de negócios é enorme.
E tudo começou com uma observação atenta, em circunstâncias fortuitas, feita por um botânico austríaco em 1888. A que se seguiu o trabalho científico e técnico de diversos investigadores ?desinteressados? antes que uma primeira patente fosse registada em 1936. Qual o real substrato intelectual e que fins serve a chamada ?propriedade intelectual??


  
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora
Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora

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