Página  >  Edições  >  N.º 160  >  Por que não se reconhecem os homens?

Por que não se reconhecem os homens?

Muitas vezes tenho de escrever sobre a educação para os direitos humanos (uma das vertentes do meu trabalho, há, já, alguns anos), mas, neste momento, sinto uma quase impossibilidade. O que posso eu dizer sobre a dignidade humana, a protecção dos direitos, a importância das Declarações e dos Tratados Internacionais, o papel da ONU e de outros organismos internacionais, quando assistimos, por estes dias, às maiores violações?
Martelam-me, na cabeça, as imagens do Líbano, rememoro as do Iraque, do Afeganistão, da Bósnia, do Kosovo, do Sudão e de tantos e tantos outros países, e fico paralisada. Há qualquer coisa na dimensão da tragédia, sobretudo quando fixamos as pessoas, que nos impede de pensar ou de dizer seja o que for, tal é o choque. Contudo, é uma exigência ética falar, denunciar, agir. Sabemos bem como é importante, para as vítimas e para a resolução dos conflitos, uma fotografia, uma imagem televisiva, uma reportagem de rádio, um texto publicado, uma manifestação, etc. A pressão mediática e da opinião pública, nos diferentes países, é, muitas vezes, o que desperta a diplomacia internacional, aparentemente adormecida, como se lhe fosse impossível fazer alguma coisa antes de caírem as bombas. 
A guerra é, talvez, a situação mais horrenda de violação dos direitos humanos, na medida em que é palco de muitas indignidades, antes, durante e após os conflitos: a falta de liberdades, as injustiças e as discriminações; o medo, a destruição e a morte; as populações deslocadas, fugindo das zonas de conflito, deixando tudo atrás; os refugiados, vivendo em intermináveis campos de lona, onde falta quase tudo; os meninos soldados, levados à força das suas aldeias, ensinados a matar, sob o efeito de drogas, sem réstia de sentimentos (há descrições impressionantes de meninos combatentes, por exemplo na Serra Leoa); o abuso sexual de mulheres, algumas ainda crianças; os mutilados física e psicologicamente; as famílias destroçadas, onde falta o pai, a mãe ou ambos; os meninos abandonados à sua sorte, vítimas de uma guerra que lhes tirou tudo, até o futuro; a propagação de doenças; os campos minados; e tantas e tantas outras violações que poderíamos continuar a enumerar. 
Por que não se reconhecem os homens? Por que se matam desta maneira, depois de séculos e séculos de civilização? Agem como se não tivessem aprendido nada com a filosofia, a história, a ciência, a arte, a religião (qualquer religião), como se ninguém lhes tivesse falado, alguma vez, do valor da vida humana e da necessidade de justiça. Custa aceitar que estejamos sempre a ter de recomeçar, a ter de reconstruir, a ter de iniciar tudo. Uma irracionalidade, pois não pode haver razões aceitáveis para justificar nenhum conflito armado.
A guerra não é uma catástrofe natural (ao contrário, é de uma premeditação, de uma engenharia, de uma sofisticação tecnológica, etc. que arrepia), alguém decidiu e ordenou a matança. A guerra pode, por isso, ser evitada e sê-lo-á quando se pensar a sério na luta contra todo o tipo de dominações, quando se terminar com a fome, a miséria, o subdesenvolvimento, as intolerâncias e os radicalismos étnicos, políticos, culturais e religiosos.
Contudo, não podemos esquecer que há na violência e nos conflitos uma razão mais profunda que tem a ver com a própria natureza humana. Na realidade, somos, em nós mesmos, bons e maus, capazes das melhores e das piores coisas, se não dominarmos os nossos instintos e os nossos interesses mesquinhos. É aqui que o papel da educação em geral e da educação para os direitos humanos em particular se mostra decisivo ? mesmo sabendo que não é garantia de coisa nenhuma, muitos dos que decidem as guerras têm estudos superiores, conhecem todas as declarações e todos os tratados internacionais, mas fazem deles letra morta ?, pois se as crianças e os jovens ganharem consciência do que significa (e implica) a liberdade, a igualdade e a dignidade humanas, vão, de certeza, quer mudar muita coisa.
Neste trabalho, deve estar a escola e igualmente toda a sociedade, nomeadamente as Organizações Não Governamentais, desenvolvendo, em conjunto, programas e acções concretas, com profundo significado para as pessoas e as suas comunidades.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Maria Rosa Afonso
Professora
Maria Rosa Afonso
Professora

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo